Nada melhor do que as falsas Decretais do Pseudo-Isidoro
para firmar a ideologia do poder eclesiástico romano
Já no século V existia um antigo catálogo dos bispos de
Roma: é o "Liber Pontificalis", que na Idade Média era atribuído ao
papa Dâmaso (366-384), embora do ponto de vista histórico não se possa
fixar-lhe a data.
Este catálogo era também chamado "Anastásius",
pois alguém começou a lançar a ideia de que teria sido compilado por Anastásio
o Bibliotecário (Roma; 815-878), da Igreja romana, que foi homem de
confiança de três papas: Nicolau I, Adriano II, João VIII.
Mas era uma autêntica fraude, pois tentava impor numa
época de ignorância absoluta, mesmo entre os eclesiásticos, um documento que
encontramos nas suas formas rudimentais no ano de 530.
Veja-se esta obra na edição de Schelstrate, que no seu
livro "Antiquitas Ecclesiae Romanae" (1693; I; pág. 402, ss) colocou
em duas colunas emparelhadas, de um lado o texto do ano 530 e, ao lado, numa
outra coluna, tudo que foi acrescentado nas décadas posteriores, do começo até
o ano de 724 com Gregório II (715-731).
Então aparece em evidência tudo aquilo que foi acrescentado,
sem nenhum fundamento histórico. É pura manipulação; é pura fantasia, com a
finalidade de mostrar a importância da Igreja de Roma no cenário europeu e
asiático.
O livro é escrito num latim deficiente e meio bárbaro que em
nada respeita a importantíssima "Conseçutio temporum" dos grandes
escritores latinos!
Qual a finalidade deste livro?
Em primeiro lugar era mostrar que os bispos de Roma até
então formavam uma cadeia ininterrupta de bispos que, a partir de São Pedro,
tinham autoridade sobre a igreja universal.
Em segundo lugar, considerava-se importante crer e fazer
crer que a Igreja de Roma teve o maior número de mártires que todas as demais
igrejas cristãs. (Sabemos hoje que nem um terço daquilo que está escrito no
livro rege a uma pesquisa histórica. Mas, numa época de grande ignorância e
fanatismo, isto era importante).
Em terceiro lugar interessava dar caráter histórico a muitas
lendas atribuídas a papas e imperadores, como o batismo romano de Constantino.
Em quarto lugar, era necessário apresentar os bispos de Roma
como legisladores de todas as igrejas, introduzindo frases como: "aprovou
o sínodo tal..."; ou "aprovou o concilio tal..."; etc, embora
hoje saibamos muito bem pela pesquisa histórica que esses bispos romanos nunca
participaram de sínodos e concilio porque nem eram informados, tão pouco caso
se fazia deles!
Finalmente, em quinto lugar, apresentar os bispos de Roma
como reformadores litúrgicos. (Hoje o mesmo A. G. Martimort na sua fundamental
obra "A Igreja em Oração"; trad, portuguesa; Barcelos; 1965;
reconhece a falsidade desta tese!).
O "Liber Pontificalis" é uma das mais belas
invenções da ideologia do poder dos bispos de Roma. Não tem nenhum fundamento
histórico pois os seus autores só sabem afirmar que "papa Dámaso...",
"papa Gelásio...", "papa Hilário...", "fecit
constitutum de omni ecclesia", isto é: promulgou este decreto para toda a
Igreja, o que significou, até aos dias de hoje: para a Igreja universal... Era
a tentativa de criar uma situação de fato!
Otto Piper, teólogo presbiteriano, nascido na Alemanha em
1891 e formado em Filosofia e Teologia, entre os vários livros que escreveu, há
um que é interessante: "Einleitung ,in,,die monumental Theologie"
(Gotha; 1867; pág. 315-349), onde afirma e prova que tudo que o " Liber
Pontificalis " contém, não passa de afirmações (sem provas) dos séculos VI
e VII.
É como dizer que nada é histórico! Aliás, quase tudo é
anti-histórico. É o mesmo que afirmam os críticos Tillemont e Constant depois
de um detido exame crítico , do "Liber Pontificalis" afirmando que se
torna mais que evidente que os autores deste livro nunca tiveram diante dos
olhos algum material histórico em forma de documento.
A única série de papas que aparenta ser historicamente
correta é aquela escrita mais ou menos no ano de 536, que vai de Leão I (440) a
Félix IV (526); mas esta série é também enfeitada de calculadas invenções
romanas.
Mas a Crítica Histórica é uma disciplina moderna. Naquelas
antigas épocas de ignorância geral, o "Liber Pontificalis" fez um
tremendo sucesso, primeiro porque apresentado pelo papa reinante, isto é: uma
autoridade que ninguém ousava discutir, protegida, aliada e amparada pelas
armas dos príncipes.
Sabemos pela História que o primeiro a utilizar-se
publicamente do "Liber Pontificalis" foi Beda, o
"venerável" (Durham: 673-735), que escreveu "História
Eclesiástica Gentis Anglorum" (História Eclesiástica da nação dos ingleses).
Beda era um erudito meticuloso que na Europa do Norte
gozava de extrema confiança. No ano 710, escrevendo sobre o cristianismo,
utilizou-se do "Liber Pontificalis" e chegou a afirmar que desde a
origem do cristianismo os bispos de Roma sempre foram os legítimos legisladores
da Igreja Universal.
A estima que todos tinham de Beda serviu para calçar as falsificações
posteriores das Decretais do Pseudo-Isidoro.
AS DECRETAIS
Isidoro, bispo de Sevilha 601, presidiu o importante
Concílio de Toledo em 633. Era considerado o maior erudito do seu tempo, ao
ponto de ser proclamado doutor da Igreja. Escreveu “Etymologiae" e outros
panfletos que o tornaram conhecidíssimo pelos bispos espanhóis e franceses.
Mais ou menos no VII século, os bispos dos países francos,
situados à margem esquerda do Reno, fabricaram uma centena de documentos falsos
que afirmavam serem uma coleção de 100 antigas cartas e decretais de vários
bispos de Roma e de vários sínodos, que o bispo Isidoro de Sevilha havia
juntado e catalogado.
Lia-se nesses documentos que as Igrejas da Gallia dependiam
exclusivamente do bispo de Roma, que detinha o poder eclesiástico absoluto
sobre toda cristandade europeia.
A finalidade dessas falsas decretais era verem-se livres
dos metropolitas da região, bem como de
príncipes e reis, Esse bispos viriam assim a depender exclusivamente do bispo
de Roma (que na época estava a cerca de dois meses de viagem a cavalo...
Quando o bispo de Roma Nicolau I (858-867) soube da
existência dessas decretais, apoderou-se delas imediatamente, servindo-se logo,
logo, como se fossem documentos autênticos que serviam muito bem à ideologia
do poder eclesiástico romano.
Com base nestas Decretais do Pseudo-lsidoro, a Igreja de
Roma proclamou e fez saber a todas as demais igrejas que ela detinha a
plenitude do poder eclesiástico.
Em consequência disso, todos os decretos sinodais e
conciliares deviam ter a aprovação de Roma antes de entrar em vigor; e,
finalmente, todos os bispos eram apenas auxiliares do bispo de Roma," que
se tornava automaticamente o bispo da Igreja Universal e o ponto de referência
para a fé, liturgia e costumes.
E não era isto que os bispos de Roma queriam, quando
idealizaram a ideologia do poder? Gregório VII usou e abusou destas decretais
e, por meio delas, colocou a firme plataforma do poder romano.
Autor: Carlo Bússola, professor aposentado de Filosofia na
UFES
Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” –
Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.