O bispo de Roma Leão Magno foi o primeiro que falou no
direito que os bispos têm de mandar nos cristãos
Desde o começo, os apóstolos estabeleceram auxiliares. Assim
nos informa Clemente Romano. Estes auxiliares eram chamados
"episcopói" ou ''presbiterói". Também as cartas de Inácio de
Antioquia (100-115) dizem a mesma coisa, talvez repetindo Clemente...Também
Cipriano, bispo de Cartago, repete Clemente.
Para todos, porém, é coisa evidente que os bispos são autónomos
em suas assembleias (Igrejas); "quando muito, comunicam-se uns com os
outros mediante cartas exortatórias ou doutrinais, ou simplesmente pedindo
esclarecimentos.
Assim Clemente de Roma escreve ao bispo de Corinto; assim
Dionísio, bispo de Corinto, escreve ao bispo de Roma... Surge, aos poucos, para
facilitar as consultas entre si, o cargo dos metropolitanos, cujas sedes são:
Antioquia, Cesareia, Jerusalém, Alexandria e Roma.
Os bispos que pertencem a uma sé metropolitana, vez ou outra
se reúnem em sínodos para confrontarem suas ideias, ou para julgarem as ideias
de algum cristão que pensa diferente (herege), ou para solucionar casos
duvidosos.
Só com o concilio de Nicéia, em 325, é que a coisa toma
vulto oficial e imperial... Notamos aqui, de passagem, que os primeiros nove
concílios se realizaram todos no Oriente e os bispos de Roma não estiveram
presentes em nenhum deles, tão insignificante era a igreja de Roma!
Foi a partir do século V que os bispos de Roma tentaram
reservar-se o poder de confirmar as conclusões destes concílios, baseando-se no
fato de serem bispos da antiga capital do mundo. Veremos isto mais à frente.
Voltemos agora ao bispo Clemente Romano, iniciador da
ideologia do poder, dando continuidade ao artigo passado.
Eusébio, bispo de Cesareia (265-340) e fundador da História
Eclesiástica, nos deixou escrito (livro III; c. II) que, com a morte de Tiago,
primeiro bispo de Jerusalém, "os apóstolos, os discípulos e os parentes
vivos do Salvador juntaram-se para dar-lhe um sucessor e, por consenso unânime,
elegeram Simão Pedro". (Parêntese: então, o primeiro sucessor de Jesus e
papa, seria Tiago!?!).
Ora, na citada carta aos Coríntios, o bispo de Roma,
Clemente, nos confirma que esta regra ainda perdura na Igreja de Jesus. Não só
isso, mas, em Nicéia (325), os bispos presentes confirmaram ser este costume
ininterrupto.
Hoje, sabemos que o XXII cânon do Concilio de Cartago
"proibia aos bispos ordenar padres sem o consentimento dos demais
sacerdotes e sem a presença e aprovação dos leigos".
E o bispo de Roma, Leão Magno (440-461) fez uma lei para a
sua Igreja, onde se lê que "aquele que por direito terá que mandar em
todos, haverá de ser eleito por todos".
É um ato de democracia eclesiástica, sem dúvida, que esconde
uma realidade que já era aceita por todos – leia-se, de novo, o que São Leão
Magno escreveu: "aquele que por direito terá que mandar em todos...".
Fala-se de "direito" e fala-se de "mandar".
Ora, mandar é um ato de jurisdição que implica em
"poder" - neste caso, poder eclesiástico que se fundamenta em
direitos...
O que é poder eclesiástico? O que são estes direitos? Poder
eclesiástico é de difícil definição... É um poder muito elástico, que pode ser
esticado no tempo e no espaço, quilómetros afora... Na sua formulação inocente
parece algo que tem a ver com a vida da alma... um poder espiritual.
Mas, ao longo dos séculos, passou da alma dos fiéis ao corpo
dos fiéis (lembra da Inquisição?) e do corpo dos fiéis passou à terra dos fiéis
(lembra a doação de Constantino? e da terra dos fiéis passou aos reinos, ao
Ocidente, à terra inteira... (lembra do Tratado de Tordesilhas, em 1494?).
E o poder eclesiástico (elástico como é) se fundamenta em
direitos adquiridos. Quais são estes direitos adquiridos dos presbíteros e dos
epíscopos?
Para entender isto, voltemos ao começo. Já na época do bispo
romano Clemente não era reconhecido à igreja de Roma, no âmbito da cristandade,
nenhuma autoridade sobre as demais igrejas do Oriente ou do Ocidente.
Veja-se por exemplo, a luta escandalosa entre Cornélio e
Novaciano, na metade do III século, querendo ambos ser bispos de Roma. Foram
excomungados por um sínodo romano, mas a resposta definitiva reconhecendo
Cornélio como legítimo bispo de Roma, veio do sínodo de Cartago (África).
O mesmo aconteceu quando um sínodo espanhol depôs Marcial,
bispo de Mérida, e Basilídio, bispo de Lyon, por terem traído a fé na
perseguição de Gallo. Os dois apelaram ao bispo de Roma, Estêvão, que os
reintegrou. Mas um outro sínodo de Cartago (África) anulou o ato do bispo de
Roma, confirmando a decisão do sínodo espanhol.
Cornélio, bispo de Roma (251-253), gritava que era a ele que
competia decidir estas coisas, por ser Roma a capital do império, mas ninguém
lhe deu ouvidos.
Assim, quando se tratou de fixar a data da Páscoa, não é o
costume da Igreja de Roma que vale, mas o que determinam os concílios
provinciais de Cesareia, dq Ponto, da Gallia e da África, que, seguem o exemplo
de Alexandria (Egito), enquanto as pretensões de Victor I, bispo de Roma
(189-199) foram derrubadas pelo bispo de Éfeso.
Assim, depois da perseguição de Décio é ainda o concilio de
Cartago, convocado pelo bispo Cipriano, que resolve a questão da reconciliação
dos apóstatas e o bispo de Roma nem mesmo é consultado.
Aconteceu o mesmo com o batismo dado pelos hereges: é ainda
o bispo de Cartago, com os demais bispos africanos, que impõe as regras. (Veja:
Santo Agostinho; "De Batismo" livro II; c. XV).
Temos dezenas de outros exemplos parecidos com esses que
acabamos de citar, como, por exemplo, o caso de Paulo de Samosata; o cisma
donatista; a teologia de Ário; etc.
Em todos esses casos, eram os concílios episcopais das
diferentes igrejas que impunham o seu parecer, desfazendo, frequentemente, o
parecer do bispo de Roma. (Veja: Fleury; "História Eclesiástica";
livro VII; 56).
É pena que quem redigiu a lista dos papas na enciclopédia
Mirador, tenha colocado sob o título "principais eventos" muitas
afirmações que não têm nenhuma prova histórica.
Esses fatos acima relatados nos colocam já diante de uma
situação aceita no mundo cristão de então; uma situação que enquanto mostra a
falta do primado romano, nos primeiros séculos, salienta o direito de cada
bispo (esteja ele onde estiver) para decidir questões dogmáticas e
disciplinares.
Como chegaram mais tarde os bispos a tanto poder? Este será o
assunto do próximo artigo.
Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES
Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” –
Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.
Nota do IASD Em Foco
Agradecemos à distinta família do insigne Professor Carlo
Bússola que, gentilmente, nos autorizou a republicar este riquíssimo material
aqui no IASD Em Foco e, na série completa composta de 171 artigos, vamos
colocar semanalmente este precioso acervo e legado, fruto de arguta e profunda
pesquisa, à disposição dos fiéis leitores deste site. No entanto, lembramos, é
vedada a republicação ou postagem deste material sem a expressa autorização dos
editores deste site e, posterior, consulta à família do Professor Carlo Bússola
– detentora e fiel depositária dos direitos autorais desta obra. Consoante a
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