16/10/2012

A Escolha dos Papas II

A palavra heresia é definida como doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 28 ed). Entretanto, no período de intolerância religiosa e perseguições do período medieval em que foram assassinadas centenas de milhares de pessoas acusadas de heresia, esta palavra tinha um significado diferente.

João Hus na praça de Praga, lugar onde
foi queimado, perto fica a igreja
onde pregava.

Heresia era tudo que contrariasse a menor das imposições de Roma. E os hereges eram perseguidos e condenados à morte, geralmente na fogueira, depois das mais cruéis e ultrajantes torturas. O grande absurdo que causa assombro é que o mais herege de todos os poderes jamais manifestado no mundo em todas as épocas persegue os Santos do Altíssimo, acusando-os de hereges, em nome de Deus.
Eis alguns dos hereges: João Huss, Wicliff, Zwinglio, Pedro Valdo, Lutero etc. Todos estes eram homens simples e piedosos, cuja heresia se constituía em contestar a autoridade papal, condenando o luxo e a corrupção dos costumes e desejando o retorno à simplicidade dos tempos apostólicos e dos ensinamentos de Jesus, tendo a Bíblia Sagrada como única norma de fé.
A história dá testemunho de alguns dos que lideraram esses movimentos. Dentre estes destacaremos alguns, que a Igreja de Roma perseguiu como heréticos, destacando em primeiro lugar a João Huss: Segundo a história, João Huss vivia na pobreza e na admiração de seu povo... (Grandes Personagens da História Universal, p. 383). Na Boémia, e em todos os eleitorados do império, a Igreja era extremamente rica. Havia três eleitorados eclesiásticos, isto é, seus príncipes eram bispos. Conventos e bispados, afora as regalias de que gozavam como a isenção de taxas e outros benefícios , possuíam um terço da terra arável e grande riqueza em ouro e construções. Toda essa riqueza e poderio da Igreja eram normais e típicos de um Estado feudal. Mas não deixavam de criar problemas. Por toda a Europa, emergiam movimentos heréticos não reconhecidos pela Santa Sé; pregavam a volta ao Cristianismo primitivo, à pobreza dos apóstolos, que viviam só para Deus.
Pregavam contra a venda das indulgências, pois ... o dinheiro obtido com a venda de indulgências aos cristãos serviria para financiar uma nova cruzada da Igreja e enriquecer ainda mais alguns bispos que se haviam afastado da verdadeira doutrina pregada por Cristo (Ibidem). Os hereges pregavam que bispos e monges deviam abandonar os direitos feudais, dividir os haveres entre os pobres e viver como os apóstolos, trabalhando e propagando a fé (Idem, p. 384). Huss recusa-se a aceitar o princípio de que o papa é a cabeça da Igreja (Idem, p. 391).
Por esta razão o herói da fé foi perseguido pelo poder papal. Intimado a apresentar-se diante de um tribunal da Igreja para defender-se, apresentando suas razões, foi aconselhado a não comparecer. O Imperador Sigismundo, entretanto, sob juramento deu-lhe um salvo-conduto, assegurando-lhe a vida e a segurança. Sigismundo, concedendo salvo-conduto a João Huss, para ir defender no Concílio de Constança sua posição, permitiu, contudo, que fosse queimado vivo (Grandes Personagens, p. 92).
João Huss, amarrado à fogueira, foi conclamado a abjurar a sua fé, se não quisesse morrer queimado. Mantendo-se fiel, morreu como herói e mártir, cantando hinos de louvor a Deus e dando exemplo de como se porta um Santo do Altíssimo, quando defrontado com a morte. Como prémio pela sua indignidade o imperador foi agraciado pelo papa como um benfeitor da Igreja. Diz a História: ... o novo papa recebeu o nome de Martinho V. Sigismundo, (o perjuro) mereceu do novo pontífice a Rosa de Ouro, a maior condecoração da monarquia vaticana (Idem, p. 391).
Outro pregador das verdades bíblicas e que sacudiu a opinião pública sobre os desmandos do papado foi Wiclif Mestre em Oxford e famoso pregador, condensou em sua doutrina toda a indignação dos católicos ingleses contra a riqueza e a corrupção do papado. Escreveu várias obras negando a ascendência papal sobre os reis, propondo o confisco dos bens da Igreja pelo Estado e invalidando a hierarquia católica. Pregava o retorno à pobreza e o livre acesso dos fiéis a Deus, mediante as Escrituras. Denunciou o comércio de indulgências perdão dos pecados em troca de dinheiro para a Igreja e desacreditou o culto aos santos e à peregrinação. Contemporâneo do Grande Cisma (quando mais de um papa se proclamou chefe da Igreja), Wiclif desafiou o clero até o fim da vida. Suas doutrinas foram condenadas como heréticas pelo papa Gregório XII (Grandes Personagens, p. 91).
Nessa época a religião havia perdido todo o sentido e semelhança com a religião de Cristo e dos apóstolos, ensinada pela Bíblia Sagrada, que estava escondida do povo. Sua leitura fora proibida pelo Concílio de Valença, desde 1.229, quando foi colocada no índice dos livros proibidos. A ignorância é tão profunda entre o povo, a religião tão envolta em superstições... O próprio papa Leão X, sentia-se mais à vontade entre artistas e cortesãos do que ao lado de teólogos... (Grandes Personagens, Erasmo , p. 470).
Os movimentos de oposição aos abusos papais aumentavam: Na Inglaterra, Henrique VIII proclama-se chefe supremo da Igreja inglesa, que passa a se denominar Anglicana . O aprofundamento do estudo dos textos bíblicos contribuiria para a realização da Reforma Protestante. (Erasmo , p. 476).
O mais eficaz e expressivo de todos os movimentos surgiu na Alemanha, aumentando a preocupação e as perseguições do clero: Outro problema extremamente grave vinha juntar-se à lista: tomava corpo, na Alemanha, uma heresia religiosa conhecida pelo nome de Reforma. Propagada por um monge chamado Lutero, a nova doutrina pregava um culto mais simples, revoltava-se contra a vida de luxo de alguns setores do clero, contestava a autoridade do papa ( Carlos V , p. 581). Não era apenas o aspecto espiritual que preocupava a Igreja: com a Reforma, perdera muitas propriedades e deixara de recolher impostos ( Galileu , p. 657). Ulrich Zwinglio pregava o abandono de todo ritual. A fé individual deveria ser incentivada sem símbolos ( Lucrécia Bórgia , p. 119).
Semelhante aos movimentos reformadores surge próximo a Roma um pregador, Francisco de Assis, que não foi perseguido e nem teve o mesmo destino dos chamados heréticos. É que por estar próximo à Roma foi ele controlado pela hierarquia vaticana: 1.208 O papado está no auge de seu poder temporal: Espanha e Portugal são Estados vassalos da Igreja. Francisco neste mesmo ano, faz voto de pobreza e começa a pregar sua doutrina. Acompanhado dos primeiros discípulos, pede autorização ao papa para fundar uma nova irmandade mendicante. Preferindo isto a vê-los cair na heresia, Inocêncio III acede verbalmente à solicitação (São Francisco, p. 304).
 
1.215 No intuito de resguardar a autoridade papal, o Concílio de Latrão reconhece a Ordem dos Franciscanos. Inocêncio espera utilizá-la a serviço de seus próprios interesses (Ibidem). A vida de Francisco de Assis é em tudo semelhante à de Pierre Valdo, pregador considerado herético por Roma. A doutrina que pregam é a mesma. A única diferença entre os dois é que o primeiro, mais próximo de Roma, foi por ela controlado e serviu aos seus propósitos.
O segundo foi condenado como herege porque não aceitava a corrupção papal. Assim registra a História: Um rico burguês de Lyon, Pierre Valdo, distribuiu todos os seus bens entre os pobres e tomou o caminho do apostolado e da pregação errante. Com o Novo Testamento traduzido para a língua provençal, seus discípulos percorriam a Europa. A iniciativa dos pobres de Lyon como eram chamados os valdenses, muito semelhante à de São Francisco de Assis, contrariou o papado, porque fugiu ao controle eclesiástico; foi perseguido pelo Concílio de Verona (Grandes Personagens da História Universal, p. 71).
Francisco refletia sobre a vida que levava antes de sua conversão: Como pude gozar tanto de riqueza, enquanto os miseráveis erram pelas estradas à cata de um pedaço de pão? Como pode haver tanta injustiça, tanto luxo, ao lado de tanta pobreza? (Grandes Personagens, São Francisco , p. 306).
A vida luxuosa do clero deixava-o cheio de perplexidade: Francisco ouve e medita. Então é isto... diz em voz baixa, Cristo também desprezava as riquezas e pregava a Seus apóstolos uma vida simples, sem nenhum artifício material! Mas a Igreja e os prelados de hoje não parecem apreciar muito este preceito (São Francisco , pp. 308 e 311). Como a vida de Jesus era diferente da vida dos papas! reflete ele. De um lado, a maior humildade; de outro, a maior das opulências! a Igreja se desviou incrivelmente dos ensinos do Cristo . Em toda parte começam a surgir reações a este tipo de coisas. Monges, isoladamente, ou mesmo algumas confrarias, resolvem corrigir os abusos e fazer voltar a igreja à austeridade e às práticas espirituais. Insurgem-se contra a doutrina teocrática, pela qual o papa pretende ser o soberano do mundo. Pregam a volta à simplicidade do Evangelho. Assim, os valdenses, ou pobres de Lyon , pretendem despojar a Igreja das riquezas terrenas . Inocêncio bem podia consentir certas reformas, cedendo às súplicas dos monges, mas que não se tocasse em seu poder, sobretudo político! As seitas reformadoras são logo qualificadas de heréticas e seus componentes perseguidos impiedosamente. Ele próprio (Francisco) dava exemplo do que pregava... Queria uma religião pura, sem instituições ou hierarquia, para não cair nos mesmos erros do clero. A Igreja enfrentava, na ocasião, o difícil desafio das seitas heréticas valdenses, cátaros, pataros, na França meridional e na Itália se tentrional , monges que levavam uma vida simples, e criticavam asperamente a dissolução de costumes no seio da igreja oficial (Idem, p. 311).
A História reconhece a distância existente entre o que a Igreja de Roma vivia e o que ela ensinava, numa época em que são visíveis os contrastes entre a teoria e a prática da Igreja (Idem, p. 312). Inocêncio já compreendera que um movimento dessa importância, fora da Igreja, poderia constituir um perigo; dentro dela, e bem tutelado, poderia servir admiravelmente a seus objetivos (Idem, p. 315). A partir de então, a ordem expandiu-se consideravelmente. Não exatamente no sentido que desejara o fundador, mas como instrumento do poder papal (Idem, p. 316).
A venda de indulgências foi a principal causa da reforma protestante. O flagrante absurdo promovido pelo papado na busca desenfreada de dinheiro, vendendo a quem pudesse pagar um lugar no paraíso revoltou algumas poucas pessoas que tiveram acesso às verdades das Escrituras e o conhecimento de que a salvação é de graça e se obtém pela fé.
Uma dessas pessoas foi o monge Martinho Lutero, que se escandalizou ao viajar para a cidade dos césares e dos papas: A Roma que Lutero conheceu, em fins de 1.510, não era mais a cidade dos mártires, o centro espiritual da Europa Cristã. É uma cidade governada por papas desejosos de estender o seu domínio sobre as regiões vizinhas. Para isso utilizam todas as armas, desde a excomunhão até os venenos: abençoam os exércitos dos reis europeus que ensanguentam o solo italiano. O papa Júlio II não se contenta em fazer a guerra: ele a comanda em pessoa, vestido de armadura e capacete. Bispados e dioceses estão à venda. Seus titulares, grandes senhores da nobreza, vivem na corte pontifícia, em meio a intrigas e galanterias. Nos locais de peregrinação e nas igrejas as prostitutas fazem seu comércio . No entanto, a venda de sacramentos era apenas um aspecto secundário, fruto da ignorância do clero da época. Muito mais grave era a venda das indulgências, destinadas a assegurar o perdão às almas do Purgatório . No fim do século XV, a Igreja havia afirmado solenemente a eficácia das indulgências. Prometia-se aos vivos a redução das penalidades futuras no Purgatório. Para os mortos, porém, era a salvação: bastava saber a soma completa dos pecados de alguém e comprar a indulgência correspondente. Algumas bulas pontifícias, mais tarde, ofereciam não só a redução das penas, mas a completa remissão dos pecados. Asseguravam a quem tivesse dinheiro suficiente, a total reconciliação com Deus, a entrada direta no Paraíso. Durante muito tempo as populações do Ocidente medieval acreditaram que poderiam comprar a salvação acumulando relíquias e indulgências em troca de uma esmola. Interessada na difusão do culto dos santos, a Igreja associou a veneração das relíquias com o comércio das indulgências . Cada uma destas relíquias representavam séculos de indulgências (Grandes Personagens da História Universal, p. 529).
Contra este estado de coisas insurgiu-se o padre católico Martinho Lutero: Os sacramentos distribuidores da graça perderão para ele toda a importância. Assume seu lugar a iluminação interior. O diálogo entre Deus e o crente vem substituir a liturgia e os sacramentos, vem substituir a longa cadeia de intermediários entre os cristãos e o seu salvador (Idem, p. 530). Unicamente a fé e não as obras, sobretudo as feitas em troca de dinheiro. Aquele que se julga salvo por ter comprado indulgências se refugia numa falsa segurança . O ponto central dos ataques era a própria concepção de comércio de indulgências: Lutero negava o poder do papa sobre o Purgatório, não vendo na hierarquia eclesiástica autoridade suficiente para apagar as penas decorrentes dos pecados. Se o papa tem o poder de livrar alguém do purgatório, por que então, em nome do amor, ele não extingue o próprio Purgatório? No Evangelho, único tesouro do cristão, não existe uma só palavra sobre essa capacidade de perdão pela compra de relíquias (Idem, p. 531).