A palavra heresia é definida como doutrina contrária ao que
foi definido pela Igreja em matéria de fé (Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa, 28 ed). Entretanto, no período de intolerância religiosa e
perseguições do período medieval em que foram assassinadas centenas de milhares
de pessoas acusadas de heresia, esta palavra tinha um significado diferente.
Heresia era tudo que contrariasse a menor das imposições de
Roma. E os hereges eram perseguidos e condenados à morte, geralmente na
fogueira, depois das mais cruéis e ultrajantes torturas. O grande absurdo que
causa assombro é que o mais herege de todos os poderes jamais manifestado no
mundo em todas as épocas persegue os Santos do Altíssimo, acusando-os de
hereges, em nome de Deus.
Eis alguns dos hereges: João Huss, Wicliff, Zwinglio, Pedro
Valdo, Lutero etc. Todos estes eram homens simples e piedosos, cuja heresia se
constituía em contestar a autoridade papal, condenando o luxo e a corrupção dos
costumes e desejando o retorno à simplicidade dos tempos apostólicos e dos
ensinamentos de Jesus, tendo a Bíblia Sagrada como única norma de fé.
A história dá testemunho de alguns dos que lideraram esses
movimentos. Dentre estes destacaremos alguns, que a Igreja de Roma perseguiu
como heréticos, destacando em primeiro lugar a João Huss: Segundo a história,
João Huss vivia na pobreza e na admiração de seu povo... (Grandes Personagens
da História Universal, p. 383). Na Boémia, e em todos os eleitorados do
império, a Igreja era extremamente rica. Havia três eleitorados eclesiásticos,
isto é, seus príncipes eram bispos. Conventos e bispados, afora as regalias de
que gozavam como a isenção de taxas e outros benefícios , possuíam um terço da
terra arável e grande riqueza em ouro e construções. Toda essa riqueza e
poderio da Igreja eram normais e típicos de um Estado feudal. Mas não deixavam
de criar problemas. Por toda a Europa, emergiam movimentos heréticos não
reconhecidos pela Santa Sé; pregavam a volta ao Cristianismo primitivo, à
pobreza dos apóstolos, que viviam só para Deus.
Pregavam contra a venda das indulgências, pois ... o
dinheiro obtido com a venda de indulgências aos cristãos serviria para
financiar uma nova cruzada da Igreja e enriquecer ainda mais alguns bispos que
se haviam afastado da verdadeira doutrina pregada por Cristo (Ibidem). Os
hereges pregavam que bispos e monges deviam abandonar os direitos feudais,
dividir os haveres entre os pobres e viver como os apóstolos, trabalhando e
propagando a fé (Idem, p. 384). Huss recusa-se a aceitar o princípio de que o
papa é a cabeça da Igreja (Idem, p. 391).
Por esta razão o herói da fé foi perseguido pelo poder
papal. Intimado a apresentar-se diante de um tribunal da Igreja para
defender-se, apresentando suas razões, foi aconselhado a não comparecer. O
Imperador Sigismundo, entretanto, sob juramento deu-lhe um salvo-conduto,
assegurando-lhe a vida e a segurança. Sigismundo, concedendo salvo-conduto a
João Huss, para ir defender no Concílio de Constança sua posição, permitiu,
contudo, que fosse queimado vivo (Grandes Personagens, p. 92).
João Huss, amarrado à fogueira, foi conclamado a abjurar a
sua fé, se não quisesse morrer queimado. Mantendo-se fiel, morreu como herói e
mártir, cantando hinos de louvor a Deus e dando exemplo de como se porta um
Santo do Altíssimo, quando defrontado com a morte. Como prémio pela sua
indignidade o imperador foi agraciado pelo papa como um benfeitor da Igreja.
Diz a História: ... o novo papa recebeu o nome de Martinho V. Sigismundo, (o
perjuro) mereceu do novo pontífice a Rosa de Ouro, a maior condecoração da
monarquia vaticana (Idem, p. 391).
Outro pregador das verdades bíblicas e que sacudiu a opinião
pública sobre os desmandos do papado foi Wiclif Mestre em Oxford e famoso
pregador, condensou em sua doutrina toda a indignação dos católicos ingleses
contra a riqueza e a corrupção do papado. Escreveu várias obras negando a
ascendência papal sobre os reis, propondo o confisco dos bens da Igreja pelo
Estado e invalidando a hierarquia católica. Pregava o retorno à pobreza e o
livre acesso dos fiéis a Deus, mediante as Escrituras. Denunciou o comércio de
indulgências perdão dos pecados em troca de dinheiro para a Igreja e
desacreditou o culto aos santos e à peregrinação. Contemporâneo do Grande Cisma
(quando mais de um papa se proclamou chefe da Igreja), Wiclif desafiou o clero
até o fim da vida. Suas doutrinas foram condenadas como heréticas pelo papa
Gregório XII (Grandes Personagens, p. 91).
Nessa época a religião havia perdido todo o sentido e
semelhança com a religião de Cristo e dos apóstolos, ensinada pela Bíblia
Sagrada, que estava escondida do povo. Sua leitura fora proibida pelo Concílio
de Valença, desde 1.229, quando foi colocada no índice dos livros proibidos. A
ignorância é tão profunda entre o povo, a religião tão envolta em
superstições... O próprio papa Leão X, sentia-se mais à vontade entre artistas
e cortesãos do que ao lado de teólogos... (Grandes Personagens, Erasmo , p.
470).
Os movimentos de oposição aos abusos papais aumentavam: Na
Inglaterra, Henrique VIII proclama-se chefe supremo da Igreja inglesa, que
passa a se denominar Anglicana . O aprofundamento do estudo dos textos bíblicos
contribuiria para a realização da Reforma Protestante. (Erasmo , p. 476).
O mais eficaz e expressivo de todos os movimentos surgiu na
Alemanha, aumentando a preocupação e as perseguições do clero: Outro problema
extremamente grave vinha juntar-se à lista: tomava corpo, na Alemanha, uma
heresia religiosa conhecida pelo nome de Reforma. Propagada por um monge
chamado Lutero, a nova doutrina pregava um culto mais simples, revoltava-se
contra a vida de luxo de alguns setores do clero, contestava a autoridade do
papa ( Carlos V , p. 581). Não era apenas o aspecto espiritual que preocupava a
Igreja: com a Reforma, perdera muitas propriedades e deixara de recolher
impostos ( Galileu , p. 657). Ulrich Zwinglio pregava o abandono de todo
ritual. A fé individual deveria ser incentivada sem símbolos ( Lucrécia Bórgia
, p. 119).
Semelhante aos movimentos reformadores surge próximo a Roma
um pregador, Francisco de Assis, que não foi perseguido e nem teve o mesmo
destino dos chamados heréticos. É que por estar próximo à Roma foi ele
controlado pela hierarquia vaticana: 1.208 O papado está no auge de seu poder
temporal: Espanha e Portugal são Estados vassalos da Igreja. Francisco neste
mesmo ano, faz voto de pobreza e começa a pregar sua doutrina. Acompanhado dos
primeiros discípulos, pede autorização ao papa para fundar uma nova irmandade
mendicante. Preferindo isto a vê-los cair na heresia, Inocêncio III acede
verbalmente à solicitação (São Francisco, p. 304).
1.215 No intuito de resguardar a autoridade papal, o
Concílio de Latrão reconhece a Ordem dos Franciscanos. Inocêncio espera
utilizá-la a serviço de seus próprios interesses (Ibidem). A vida de Francisco
de Assis é em tudo semelhante à de Pierre Valdo, pregador considerado herético
por Roma. A doutrina que pregam é a mesma. A única diferença entre os dois é
que o primeiro, mais próximo de Roma, foi por ela controlado e serviu aos seus
propósitos.
O segundo foi condenado como herege porque não aceitava a
corrupção papal. Assim registra a História: Um rico burguês de Lyon, Pierre
Valdo, distribuiu todos os seus bens entre os pobres e tomou o caminho do
apostolado e da pregação errante. Com o Novo Testamento traduzido para a língua
provençal, seus discípulos percorriam a Europa. A iniciativa dos pobres de Lyon
como eram chamados os valdenses, muito semelhante à de São Francisco de Assis,
contrariou o papado, porque fugiu ao controle eclesiástico; foi perseguido pelo
Concílio de Verona (Grandes Personagens da História Universal, p. 71).
Francisco refletia sobre a vida que levava antes de sua
conversão: Como pude gozar tanto de riqueza, enquanto os miseráveis erram pelas
estradas à cata de um pedaço de pão? Como pode haver tanta injustiça, tanto
luxo, ao lado de tanta pobreza? (Grandes Personagens, São Francisco , p. 306).
A vida luxuosa do clero deixava-o cheio de perplexidade:
Francisco ouve e medita. Então é isto... diz em voz baixa, Cristo também
desprezava as riquezas e pregava a Seus apóstolos uma vida simples, sem nenhum
artifício material! Mas a Igreja e os prelados de hoje não parecem apreciar
muito este preceito (São Francisco , pp. 308 e 311). Como a vida de Jesus era
diferente da vida dos papas! reflete ele. De um lado, a maior humildade; de
outro, a maior das opulências! a Igreja se desviou incrivelmente dos ensinos do
Cristo . Em toda parte começam a surgir reações a este tipo de coisas. Monges,
isoladamente, ou mesmo algumas confrarias, resolvem corrigir os abusos e fazer
voltar a igreja à austeridade e às práticas espirituais. Insurgem-se contra a
doutrina teocrática, pela qual o papa pretende ser o soberano do mundo. Pregam
a volta à simplicidade do Evangelho. Assim, os valdenses, ou pobres de Lyon ,
pretendem despojar a Igreja das riquezas terrenas . Inocêncio bem podia
consentir certas reformas, cedendo às súplicas dos monges, mas que não se
tocasse em seu poder, sobretudo político! As seitas reformadoras são logo
qualificadas de heréticas e seus componentes perseguidos impiedosamente. Ele
próprio (Francisco) dava exemplo do que pregava... Queria uma religião pura,
sem instituições ou hierarquia, para não cair nos mesmos erros do clero. A
Igreja enfrentava, na ocasião, o difícil desafio das seitas heréticas
valdenses, cátaros, pataros, na França meridional e na Itália se tentrional ,
monges que levavam uma vida simples, e criticavam asperamente a dissolução de
costumes no seio da igreja oficial (Idem, p. 311).
A História reconhece a distância existente entre o que a
Igreja de Roma vivia e o que ela ensinava, numa época em que são visíveis os
contrastes entre a teoria e a prática da Igreja (Idem, p. 312). Inocêncio já
compreendera que um movimento dessa importância, fora da Igreja, poderia
constituir um perigo; dentro dela, e bem tutelado, poderia servir
admiravelmente a seus objetivos (Idem, p. 315). A partir de então, a ordem
expandiu-se consideravelmente. Não exatamente no sentido que desejara o
fundador, mas como instrumento do poder papal (Idem, p. 316).
A venda de indulgências foi a principal causa da reforma
protestante. O flagrante absurdo promovido pelo papado na busca desenfreada de
dinheiro, vendendo a quem pudesse pagar um lugar no paraíso revoltou algumas
poucas pessoas que tiveram acesso às verdades das Escrituras e o conhecimento
de que a salvação é de graça e se obtém pela fé.
Uma dessas pessoas foi o monge Martinho Lutero, que se
escandalizou ao viajar para a cidade dos césares e dos papas: A Roma que Lutero
conheceu, em fins de 1.510, não era mais a cidade dos mártires, o centro
espiritual da Europa Cristã. É uma cidade governada por papas desejosos de
estender o seu domínio sobre as regiões vizinhas. Para isso utilizam todas as
armas, desde a excomunhão até os venenos: abençoam os exércitos dos reis
europeus que ensanguentam o solo italiano. O papa Júlio II não se contenta em fazer
a guerra: ele a comanda em pessoa, vestido de armadura e capacete. Bispados e
dioceses estão à venda. Seus titulares, grandes senhores da nobreza, vivem na corte
pontifícia, em meio a intrigas e galanterias. Nos locais de peregrinação e nas
igrejas as prostitutas fazem seu comércio . No entanto, a venda de sacramentos
era apenas um aspecto secundário, fruto da ignorância do clero da época. Muito
mais grave era a venda das indulgências, destinadas a assegurar o perdão às
almas do Purgatório . No fim do século XV, a Igreja havia afirmado solenemente
a eficácia das indulgências. Prometia-se aos vivos a redução das penalidades
futuras no Purgatório. Para os mortos, porém, era a salvação: bastava saber a
soma completa dos pecados de alguém e comprar a indulgência correspondente.
Algumas bulas pontifícias, mais tarde, ofereciam não só a redução das penas,
mas a completa remissão dos pecados. Asseguravam a quem tivesse dinheiro
suficiente, a total reconciliação com Deus, a entrada direta no Paraíso.
Durante muito tempo as populações do Ocidente medieval acreditaram que poderiam
comprar a salvação acumulando relíquias e indulgências em troca de uma esmola.
Interessada na difusão do culto dos santos, a Igreja associou a veneração das
relíquias com o comércio das indulgências . Cada uma destas relíquias
representavam séculos de indulgências (Grandes Personagens da História
Universal, p. 529).
Contra este estado de coisas insurgiu-se o padre católico
Martinho Lutero: Os sacramentos distribuidores da graça perderão para ele toda
a importância. Assume seu lugar a iluminação interior. O diálogo entre Deus e o
crente vem substituir a liturgia e os sacramentos, vem substituir a longa
cadeia de intermediários entre os cristãos e o seu salvador (Idem, p. 530).
Unicamente a fé e não as obras, sobretudo as feitas em troca de dinheiro.
Aquele que se julga salvo por ter comprado indulgências se refugia numa falsa
segurança . O ponto central dos ataques era a própria concepção de comércio de
indulgências: Lutero negava o poder do papa sobre o Purgatório, não vendo na
hierarquia eclesiástica autoridade suficiente para apagar as penas decorrentes
dos pecados. Se o papa tem o poder de livrar alguém do purgatório, por que
então, em nome do amor, ele não extingue o próprio Purgatório? No Evangelho,
único tesouro do cristão, não existe uma só palavra sobre essa capacidade de
perdão pela compra de relíquias (Idem, p. 531).