Atenção, leitor! Esta obra que estou
começando a escrever não é História do Cristianismo ou História da Igreja
cristã, mas tão somente a história dos homens que ocuparam o cargo de bispos na
cidade de Roma. Vou falar de homens e de sua ideologia do poder. Só.
Nos casos específicos dos bispos de
Roma chamo de ideologia a interpretação que os mesmos fizeram e fazem
de uma situação religiosa que tem um aspecto social e político.
Essa interpretação acontece a partir
de uma evolução histórica para a qual confluíram elementos políticos, morais,
religiosos, filosóficos e econômicos que implicaram numa tomada de
posição, de modo que em primeiro lugar foram elaboradas doutrinas para
justificar aquela interpretação e, em seguida, foram tomadas as medidas que se
julgara necessárias para a realização do sonho interpretativo de situação já
programada, para realizá-lo com referência ao poder.
Neste caso, a "ideologia do poder" é
o sonho espalhado no grande círculo eclesiástico romano que justifica, sob a
luz da religião, todos esses elementos políticos, econômicos, morais e
religiosos de uma supremacia (ou ditadura) papal.
Por "poder" aqui entendo aquele
aspecto da faculdade da vontade que quer colocar-se acima dos outros para
dominá-los ou física, ou política, ou economicamente, sempre, porém, sob o
manto da religião.
Noutras palavras: poder, enquanto
tal, significa capacidade de dominar. Por isso, neste caso, ideologia do poder é
o sonho de domínio que usa da religião para estar acima do bem e do mal, seja
político ou econômico.
Deste modo, a ideologia do poder se
torna, num certo momento, o substrato de toda uma mentalidade. Seria o caso de
falar do inconsciente coletivo que se reflete no inconsciente individual dos
bispos de Roma.
Para Sto. Agostinho, só para citar
um dos grandes responsáveis desta ideologia, "o Estado justo deveria ser
aquele em que a verdadeira religião é mantida pela lei e pela autoridade e
nenhum Estado poderia ser justo a partir do advento do cristianismo, a menos
que não fosse também cristão". (G. Sabine; "História das Teorias Políticas"; Ed.
F. de C; RJ; 1964; pág. 198).
Em todos os próximos artigos só
tratarei da ideologia do poder dos homens que foram bispos em Roma. Se, a um
certo momento, estes homens deram ao seu cargo de bispos um cunho universal é
porque os homens que ocupavam este cargo compartilhavam de uma ideologia que,
embora não fosse da essência do cargo, quiseram enxertá-la no mesmo
cargo.
O
que mais impressiona o historiador é que nunca foi escrito algo com referência
direta e exclusiva a este assunto. Todos os historiadores misturam a vida
política do bispo de Roma com a história da vida cristã no Ocidente, de modo
que vida cristã e vida papal se fundem.
Sem contar que muitos historiadores
colocam um manto sobre o assunto para que o leitor não entenda nada.
Por exemplo: "A Reforma na Idade
Média" de Brenda Balton (Edições 70) só diz à página 20: "A Igreja
tornara-se negligente e mundana". E George Duby em "O Ano Mil" (Ed. 70)
nem fala da vida pessoal dos papas ou de sua ideologia do
poder...
E
é justamente o ano 1000 que é o mais importante para este assunto! Quanto
ao famoso Daniel Rops, nem se fale! Aliás, no meu modo de ver, ele confunde papado e cristianismo.
ao famoso Daniel Rops, nem se fale! Aliás, no meu modo de ver, ele confunde papado e cristianismo.
Vou agora dar o nome dos principais
historiadores e suas obras das quais me servi para este trabalho. Em primeiro
lugar, Maurice Lachatre: "História dos Papas, etc."; tradução de A. J. Vieira;
Ed. Mestre Popular; Lisboa; 1895. São cinco enormes volumes que eu
consegui de uma universidade portuguesa, quando eu era assessor do reitor da
Ufes, Dr. Manoel C. S. de Almeida.
20 Duplessis-Mornay; "Mistérios e
Iniqüidades da Corte de Roma".
30 Sto. Irineu, bispo de Lyon;
"Demonstração e Refutação da Falsa Gnose".
40 Eusébio, bispo
de Cesareia; "História Eclesiástica" e também; "A vida do bem-aventurado
Constantino”.
5°: Anastásio o Bibliotecário (da Igreja
romana). 60: João de Sa-risbury; "História Pontificalis".
7°: Johannes Burchard, bispo alemão; "Diarium" (sobre Alexandre VI e sua época).
80: Flaccius Illyricus, teólogo protestante; "História Ecclesiástica per Centúrias". 90: Luis Mainburg, padre jesuíta.
100: Claude Fleury, padre e escritor francês; "Histoire Eclesiastique" em 20 volumes.
11°: G. D. Mansi, arcebispo de Lucca na Itália; "Acta Conciliorum" em 31 volumes.
12°: Pierre Bayle, professor de Teologia;
"Dictionnaire Historique et Critique". 130:
J.J.I. von
Döllinger; "Der Papst und das Konzil" e "Die Papstfabeen des Miltecalters".
14°: L. von Pastor; "História dos papas
desde o fim da Idade Média": 16 volumes.
Alguns desses livros eu guardo
xerocados, já que não se encontram mais. De outros, tenho as notas, em velhos
cadernos amarelados, que eu fazia nos sábados e nos domingos na época em que,
jovem estudante de Filosofia e Teologia, eu era chefe da Biblioteca Teológica
e, portanto, guardião das chaves dos "livros proibidos".
Resta-me agora uma pergunta: por
qual motivo houve (e talvez ainda haja) uma ideologia do poder radicalmente
contrária à mentalidade e à pregação de Jesus Cristo assim como aparece nos
evangelhos (se é que os evangelhos retratam fielmente o pensamento
d'Ele...).
Parece-me que o mito de
supremacia da Roma eclesiástica se baseia em quatro pontos: 1o Roma
"caput mundi" (cabeça do mundo) com 20 seus divinos
imperadores que também eram 3o "summi pontífices"; e
finalmente a crença que 40 São Pedro tenha sido bispo de
Roma.
1) "Roma caput mundi",
como se dizia
então, isto é: cabeça e centro do mundo. De fato, por mais de mil anos antes e
depois de Cristo, Roma era a capital do império. Era o centro político de uma
estratégia muito séria, ao ponto que abstraindo da Roma material, foi criado o
conceito de "Dea Romaria” (a deusa Roma) que estaria vivendo
espiritualmente na Roma material.
Este fato político era tão sério que
quando os povos helenizados das províncias romanas orientais quiseram divinizar
o imperador Augusto, ele só admitiu o culto à sua pessoa conquanto que fosse
ligado ao culto de Roma. Mircea Eliades em "História das crenças e das idéias
religiosas" explica isto muito bem.
Ora, pensavam os bispos cristãos de
Roma, do mesmo modo que o culto do imperador e o culto de Roma unificava
o império, assim, agora, o culto ao vigário de Cristo e o culto à cidade
de Roma, quase toda cristã, unificará o Cristianismo.
2) "Seus divinos imperadores":
divinos, por causa da Deusa Roma. É ainda Mircea Eliades (op. cit.; Zahar;
1978; T. 1; v.l;pg. 116) que nos relata quais e porque os
imperadores romanos foram proclamados deuses: Júlio César; Augusto (27 a.C. -14 d.C); Cláudio (41 d.C.);
Vespasiano (69-79); Tito (79-81); Adriano (117-138);
Antonino (138-161); Marco Aurélio (161-170); Cômodo e
Galliano.
3) "Pontífices Maximi" (sumos
pontífices): o II rei de Roma, Numa Pompílio (715 - 672 a.C.) organizou a religião dos romanos e fundou o
colégio de cinco sacerdotes dirigidos por um sumo pontífice cujo cargo chegou a
ser de tanta importância junto ao povo e aos nobres que os imperadores o
reservaram para si.
A
partir de então estavam juntos, numa só pessoa, a política e a religião e deste
modo era mais fácil conseguir a obediência total e completa do povo. Foi a
partir desta idéia que nasceu a ideologia eclesiástica do poder: poder
religioso e político.
4) São Pedro bispo de Roma:
verdade ou mentira, o fato é que a idéia pegou. O primeiro a nos dizer que
Pedro esteve em Roma foi Eusébio, que morreu 303 anos após a morte de
Pedro (67 d.C.)!!! Mas ele diz ter acolhido testemunhos de Sto. Irineu,
bispo de Lyon (que morreu 136 anos após Pedro!!); de Clemente de
Alexandria (que morreu 146 anos após Pedro!!) e de Papias (que morreu
207 anos após Pedro!!)... É pura tradição: veja meus artigos números
541, 546, 547, 539.
Verdade ou mentira, a idéia pegou e
serviu muito bem à ideologia do poder eclesiástico romano.
No fim da obra colocarei um núcleo
sintético de pesquisas com referência aos "passos" dados pelos bispos de Roma
para alcançar o poder e um resumo da evolução jurídico-teológica da ideologia
eclesiástica do poder, a partir do começo até Bellarmino e Suarez, ambos
jesuítas.
Autor: Carlo
Bússola, professor de Filosofia na UFES
Fonte: Publicado
originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os
Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.
Observação: Mantida
a formatação original em todos os artigos, apenas os destaques visuais são por
conta deste site.
Nota do IASD Em
Foco
O Professor Carlo
Bússola, residente em Vitória-ES, é um erudito e pesquisador incansável deste
tema – o qual expôs com brilhantismo, jamais visto por este editor, numa série
de artigos publicados semanalmente no jornal “A Tribuna” e acompanhados e lidos
com avidez pelo principal jornal do Estado do Espírito Santo. Hoje desfrutando
da merecida aposentadoria, o Professor Carlo Bússola durante anos esteve à
frente da cátedra de Filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Agradecemos à distinta família do Professor Carlo Bússola que, gentilmente, nos
autorizou a republicar este riquíssimo material aqui no IASD Em Foco e, na série
completa composta de 171 artigos, vamos colocar semanalmente este precioso
acervo e legado, fruto de arguta e profunda pesquisa, à disposição dos nossos
internautas e fiéis leitores deste site. No entanto, lembramos, é vedada a
republicação ou postagem deste material sem a expressa autorização dos editores
deste site, amparada numa consulta à família do Professor Carlo Bússola –
detentora e fiel depositária dos direitos autorais desta obra. Consoante a isso,
lembramos ainda que o uso e/ou distribuição deste material – sob quaisquer
formas – fora dos limites aqui expostos configura crime, sendo os infratores
passíveis das penalidades previstas nas leis de direitos autorais.