No livro “A Cidade de Deus”, Agostinho dá a entender que a Igreja é a única representante de Deus na Terra
Para entender o pensamento de Sto. Agostinho lembramos
uma particularidade histórica de valor fundamental: até o século IX ser bispo
cristão ou mesmo ser um fiel cristão, não significava estar em comunhão com o
bispo de Roma.
Essa "comunhão" é uma invenção muito tardia no
cristianismo; além do mais, a autoridade e o valor eclesiástico de um bispo
qualquer não eram maiores do que aquilo que tem um padre (vigário) qualquer da
nossa cidade, com exceção do poder político do bispo de Roma que representava na
Itália o imperador que vivia no Oriente.
Era-se cristão pela adesão aos decretos dos grandes
concílios: de Nicéia (325) em primeiro lugar; mas também de Constantinopla (381)
que tratou do Espírito Santo; de Efeso (431) que condenou o nestorianismo e o
pelagianismo; de Calcedônia (451) que afirmou que Jesus tinha uma natureza
humana e uma natureza divina unidas na única pessoa do verbo; e de
Constantinopla II (553).
Os bispos eleitos costumavam escrever uns para os outros
afirmando sua fé e lealdade aos decretos dos concílios. Os bispos de Roma faziam
a mesma coisa: mandavam e recebiam cartas de outros bispos.
Daí o erro de muitos historiadores católicos
que imaginam serem estas cartas romanas documentos comprobatórios do "primado":
erro imperdoável porque distorce a verdade.
Voltemos a Sto. Agostinho (354-430) nascido no norte da
África, numa terra que era uma mistura de raças (númida; púnica; romana) e uma
mistura de religiões (orientais; egípcios; pagãos romanos e
cristãos).
O "púnico" é a antiga língua da Fenícia cuja cultura
sobrepujava em Cartago. Leia-se o interessante romance histórico "O Cartaginês"
de Manáf Hardan; Ed. Edicon; SP; 1985.
Mas não deixe de ler também J. Mac Cabe: "St. Augustine
and his Age"; London; 1926;
onde se lê, à página 35, que Salviano, sacerdote cristão e teólogo, morto em Marsélia em 494, escreveu que "a África é a cloaca do mundo" e que Cartago é "a cloaca da África".
onde se lê, à página 35, que Salviano, sacerdote cristão e teólogo, morto em Marsélia em 494, escreveu que "a África é a cloaca do mundo" e que Cartago é "a cloaca da África".
Apesar de ter nascido em Tagaste, foi em Cartago que
Agostinho viveu até os 29 anos de idade quando se foi para Roma, onde lecionou
Retórica por um ano, mas, não sendo pago pelos alunos, transferiu-se para Milão.
O resto da história da sua vida, sua conversão ao catolicismo; sua volta à
África; sua eleição a bispo é bem conhecida...
Mas é da sua influência no poder eclesiástico que agora
quero falar.
Já no Concilio de Cartago, convocado em 411 pelo
imperador Honório (e não pelos bispos!!!) para pôr fim à briga dos donatistas e
seus 279 bispos, contra os 286 bispos
católicos, notamos a posição de Agostinho: ele ensinava que sendo a Igreja Católica o "pai espiritual de todos os cristãos", ela tem o "direito de pai" para punir o filho desobediente e isso para o próprio bem dele (Epist. 173).
Quanto ao pensamento teológico de Agostinho, ele pode
ser resumido em três pontos: primeiro, o universo e o homem no universo foram
criados do nada; segundo, o homem é mau por sua essência; terceiro, a salvação
do homem é puro dom gratuito de Deus.
Quanto ao primeiro ponto, Agostinho não conseguia
conciliar a infinita pureza de Deus com a enorme "sujeira" da criatura toda
mergulhada no sexo e nos vícios.
Portanto a criação devia estar "fora" de Deus, muito
"fora". (O que filosoficamente é uma besteira porque pela definição do conceito,
mesmo aproximativo, de Deus, não pode haver na Divindade um "dentro" e um
"fora", já que Ela é tudo).
Quanto ao segundo ponto, é evidente que Agostinho era
influenciado pela sua experiência psicológica negativa, de modo que projetava
nos outros aquilo que ele achava em si mesmo.
Quanto ao terceiro ponto, parece que Agostinho antecede
a doutrina calvinista de que Deus escolhe arbitrariamente desde a eternidade, o
eleito a quem ele daria a graça da salvação (veja o "Sermão"
165).
Neste campo, seu grande adversário era Pelágio, um monge
britânico que chegou a Roma no ano de 400 e defendia a tese
contrária.
Houve muitos debates, muitos sínodos, muitas decisões e
condenações e cada um ficou com suas idéias!!
Mas o livro que resume seu pensamento filosófico e
teológico é o "De Civitate Dei" (A Cidade de Deus) escrito entre 413 e 426. É
uma obra que nasceu de um conflito pluricultural e num momento histórico muito
triste: Alarico acabava de saquear Roma e os pagãos culpando os cristãos por
faltarem aos antigos cultos e os cristãos de diferentes seitas acusando-se entre
si.
Para escrever esse livro, Agostinho foi buscar em Platão
a concepção de um Estado ideal que existiria "nalgum lugar, no céu"; foi buscar
em São Paulo a idéia de uma comunidade viva de santos (Ef. 2,19); em Ticônio,
que era donatista, buscou a doutrina das duas sociedades: uma de Deus, outra de
Satanás.
Misturou tudo e ideou a cidade terrena onde os homens
vivem para seus negócios, vícios e prazeres e a cidade divina que reúne os
adoradores de Deus.
Que título haveria de dar ao livro? Marco Aurélio o
ajudou (Meditações; 4,19): "Por que não chamar o mundo de bela cidade de Deus?"
Só que Agostinho diz que a cidade de Deus teve início quando Deus criou os anjos
e a cidade terrena quando os demônios se rebelaram (15,1).
Onde está hoje a cidade de Deus? Ela está na Igreja
Católica, pois só ela pode identificar-se com a cidade de Deus (19,7 e
20,9).
Essa tese virou logo, logo, instrumento
ideológico da política dos bispos de Roma que encontraram em "A Cidade de Deus"
o fundamento ideológico de um Estado teocrático, o único que tem o direito de
existir, enquanto que os poderes seculares devem estar subordinados ao poder
espiritual que só existe na Igreja Católica "romana".
Claro é que Agostinho não diz "romana". Foram os bispos
de Roma que completaram esta idéia política. É esta a tese que mais entusiasmará
Gregório VII, que, fundamentando-se nela, construirá, no século XII, o enorme
império político dos bispos de Roma.
A verdade é que a tese de Agostinho foi
desenvolvida aos poucos com a finalidade de tornar a Igreja de Roma uma
verdadeira potência universal.
Infelizmente, desde então deu origem aos maiores abusos
quanto à política e a muita violência durante toda a Idade Média, como iremos
ver; isto porque a instituição espiritual e o conceito
místico de "Cidade de Deus" se tornou uma verdadeira instituição jurídica
política e financeira, que, como escreve H. Rohdin em "Filosofia Contemporânea"
(v. II; pág. 22) "substituiu a força do espírito pelo espírito da
força".
Mas se a Igreja Romana é a cidade de Deus na Terra, o
seu clero pode viver em paz, gozando a vida. Explicam-se então os escritos de
São Gerônimo contra os eclesiásticos romanos ("Epistucal";
22,14):
"São reprováveis os eclesiásticos de cabelos
encaracolados e perfumados que freqüentam a alta sociedade e o padre que vive à
caça de legados e de testamentos e se levantam logo ao romper do dia para
visitar as mulheres antes de elas deixarem a cama".
Em "A Cidade de Deus" notamos que Agostinho desenvolveu
suas idéias dentro de um contexto jurídico, pois se a Igreja Católica é a Cidade
de Deus, então ela deve existir já nesta Terra e deve ser considerada uma
sociedade jurídica com determinadas leis que tornem viável e sustentem a sua
estrutura interna, externa e visível, mostrando e oferecendo o caminho para
chegar ao reino de Deus, lá no Céu.
A idéia seguinte é que há uma Igreja visível que nasce
de uma Igreja invisível. Tomás de Aquino e mais tarde o Concilio de Trento, no
século XVI, desenvolverão estas idéias em favor da teocracia eclesiástica
romana.
Jamais Agostinho imaginou (à diferença de Tomás de
Aquino) que a Igreja romana tivesse o direito de punir com a morte os heréticos
impenitentes (o que se fez na Inquisição).
Mas, enfim, mesmo que Agostinho jamais
pensasse na Inquisição, é evidente que ofereceu o material teológico para que o
bispo de Roma aprovasse a Inquisição.
Outra preciosidade que Agostinho ofereceu à Igreja de
Roma foi a distinção entre "ex opere operantis" e "ex opere operantíl", que
significa o seguinte: os sacramentos agem no cristão "ex opere operato" isto é:
por si mesmos, ou seja, independente de estar o padre em graça ou em pecado ("ex
opere operantis").
Ora, numa época de tanta imoralidade entre o
clero (M. Lachatre; op. cit.; v.I; passim) nenhum fiel devia importar-se se o
padre que lhe dava, por exemplo, o batismo, ou a confissão, era ou não pecador,
porque o sacramento agia por sua conta, isto é: "ex opere operato": o padre era
simples distribuidor.
Foi um presente e tanto para os
eclesiásticos!
Entretanto, embora tendo oferecido armas valiosas aos
eclesiásticos romanos, ninguém pense que ele fosse defensor do "Primado", ou,
como diríamos hoje, defensor do papado. Muito pelo contrário! Nesses séculos o
poder supremo do cristianismo residia nos concílios e isto continuou até o ano
de 1870, quando o Concilio Vaticano I substituiu este princípio democrático pelo
princípio ditatorial do primado romano e da infalibilidade
papal.
O que pensaria Agostinho desta usurpação romana? Pegue o
leitor a Petrologia Latina (Edição Migne; Paris; 1877; vol. V; pág. 479, ss.;
número 76) e leia: o que Sto. Agostinho escreve de São Pedro apóstolo: "Porque
tu, ó Pedro, me disseste: 'tu és o Cristo filho do Deus vivo' também eu te digo:
'Tu és Pedro', pois antes eras chamado Simão”.
“Esta é uma figura para que significasse a
Igreja, porquanto a pedra é Cristo e Pedro é o povo cristão, pois pedra é o nome
principal, tanto assim que Pedro vem de pedra e não pedra de Pedro, assim como o
nome Cristo não vem de cristão mas cristão de Cristo.
“Diz, portanto, Jesus: “tu és Pedro e sobre esta Pedra
que acabas de confessar, sobre esta Pedra que conheces-te dizendo: tu és o
Cristo, filho do Deus vivo! Eu edificarei a minha Igreja. Quer dizer: sobre Mim,
filho de Deus, Eu edificarei a Minha Igreja; sobre Mim é que Eu te edificarei e
não a Mim sobre ti” (...); pois quando os homens queriam edificar sobre homens,
diziam: “eu sou de Paulo; eu sou de Apolo; eu sou de Cefas...”
“Mas aqueles que não queriam edificar sobre
Pedro, mas, sim, sobre a Pedra, dizem: “Eu sou de Cristo. Ora, quando o apóstolo
viu que ele estava sendo eleito e Cristo desprezado, disse: porventura está
Cristo dividido?
“Será que Paulo foi crucificado por vós? Ou fostes
batizados em nome de Paulo? Assim não foram batizados em nome de Pedro e sim em
nome de Cristo para que Pedro fosse edificado sobre a Pedra e não a Pedra sobre
Pedro.
Neste trecho a idéia de Agostinho é clara:
não é Pedro (e seus sucessores - que, aliás, Jesus nem sequer nomeia) que vale,
e sim o Cristo e somente Ele.
Mas acontece que ninguém lê "A Cidade de Deus" à luz
deste trecho! Por isso Agostinho continua sendo usado como respaldo da ideologia
do poder eclesiástico romano.
Autor: Carlo Bússola, professor de
Filosofia na UFES
Fonte: Publicado originalmente no jornal
“A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a
Ideologia do Poder”.
Nota do IASD Em Foco
Agradecemos à distinta família do insigne
Professor Carlo Bússola que, gentilmente, nos autorizou a republicar este
riquíssimo material aqui no IASD Em Foco e, na série completa composta de 171
artigos, vamos colocar semanalmente este precioso acervo e legado, fruto de
arguta e profunda pesquisa, à disposição dos fiéis leitores deste site. No
entanto, lembramos, é vedada a republicação ou postagem deste material sem a
expressa autorização dos editores deste site e, posterior, consulta à família do
Professor Carlo Bússola – detentora e fiel depositária dos direitos autorais
desta obra. Consoante a isso, lembramos ainda que o uso e/ou distribuição deste
material – sob quaisquer formas – fora dos limites aqui expostos configura
crime, sendo os infratores passíveis das penalidades previstas nas leis.