25/04/2010

A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: OS AUTOS-DE-FÉ


Outro tormento, que é o mesmo que dizer outra infâmia da Inquisição, consistia em demorar a morte. Não se tendo podido evitar uma sentença que condenava a uma morte cruel e vergonhosa, desejava-se ao menos morrer depressa. Mas nem isto concedia a Inquisição! Muitas vezes, depois da condenação, as execuções demoravam um e mais anos, para se juntar o maior número possível de condenados, aparecer mais horroroso o espectáculo e oferecer maior exemplo – confirmando mais os povos na religião católica – como diziam os inquisidores.
E então, de vez em quando, fazia-se um auto geral, consagrado como uma das mais solenes cerimónias religiosas, dando-se provas ostensivas e estrondosas do zelo votado à religião católica, “apostólica”, romana.
A esses espectáculos de grande retumbância pública, em que se executavam criaturas acusadas de não pensarem pelos dogmas dos inquisidores, dava-se o nome de Autos-de-Fé!
No dia fixado, e depois de se ter anunciado aos quatro ventos do Reino o grandioso espectáculo a representar pela Igreja, no Rossio ou no Terreiro do Paço, marchava tudo em procissão solene, emocionante: - à frente uma companhia de carvoeiros, armados de piques e mosquetes para “ministrarem a lenha que se havia de acender para queimar os condenados ao fogo”. Seguia-se o estandarte de São Pedro Mártir e os Dominicos, monopolizadores da Inquisição. Custodiando os condenados, iam os familiares do Santo Ofício. Dos condenados, iam de baraço ao pescoço, tochas na mão, carochas ou barretes de papelão, da altura de três pés, na cabeça, e vestidos de uma samarra – que tinha representado por diante e por trás o retrato dos padecentes sobre chamas que se elevavam entre demónios – os condenados à fogueira; depois outros também de tocha, carocha e samarra, mas esta sem retrato e sem demónios pintados – e com as chamas voltadas para baixo – a que se chamava fogo revolto – estes eram os que evitavam o fogo por confessarem depois da sentença; seguiam-se os presos pela primeira vez e arrependidos, condenados a alguns anos de prisão ou a trazer sambenito. Também eram levados na procissão as efígies e os ossos dos que tinham morrido nos cárceres; ossos e efígies que haviam de ser ali queimados. Vinham depois frades com crucifixos, os inquisidores e a massa geral do povo em procissão – a grande plateia!
Depois de terem tomado os seus lugares: - uns, no estrado glorioso, levantado na praça, para os inquisidores, os grandes, a corte; e outros, na arena, dizia-se missa: - um demónio subia a um púlpito, improvisado também, e fazia uma prática de louvores à Santa Inquisição; e, por fim, liam-se as sentenças. Primeiro, as daqueles que tinham morrido na prisão e depois as de cada um dos condenados, sendo todos colocados bem em evidência diante dos olhos dos espectadores.
O inquisidor-geral dava absolvição solene aos que se tinham arrependido.
Os processos dos condenados à fogueira terminavam por estas palavras: “Que não podendo o Santo Ofício perdoar-lhes, por causa da sua reincidência ou da sua impenitência, e achando-se indispensavelmente obrigado a puni-los segundo o rigor das leis, os entregava para serem queimados.”
Aproximava-se, então, um oficial da justiça secular, que tomava posse deles. Quando chagavam ao sítio onde estavam reunidos os juízes seculares, perguntavam-lhes estes em que religião queriam morrer. Do processo não cuidavam saber. Não duvidavam da infalibilidade da Inquisição… Mal aqueles desventurados respondiam àquela única pergunta que se lhes fazia, imediatamente um verdugo os agarrava e atava a postes levantados sobre as fogueiras. Quando eles declaravam que morriam cristãos, eram garrotados antes de queimados. Se declaravam – o que rarissimamente aconteceu – persistir no erro herético – eram queimados vivos.
Ao outro dia eram levados às igrejas dos Domínicos os retratos das cabeças, ao natural, dos que tinham sido executados, desenhadas em chamas – e tendo por baixo de cada um o seu nome, o do pai, o da sua pátria, a espécie de crime por que foi condenado, o ano, o mês e o dia da execução.
Se tinha caído duas vezes no mesmo crime – dizia-se: - Morreu queimado por herege relapso. – Se, tendo sido acusado uma só vez, persistira no erro – escrevia-se: - por herege contumaz. Mas este último caso era raríssimo. Se tinha sido acusado uma só vez, mas por um número suficiente de testemunhas, e teimava em se declarar inocente, professando mesmo o Cristianismo (!) até à morte, punha-se debaixo do retrato este registo: - morreu queimado por herege convicto negativo, quer dizer, como convencido de herege, mas que não confessava.
Circunstancias tremenda contra a Inquisição: “Pode-se ter como certo, que de cem negativos, havia pelo menos noventa e nove, que eram não somente inocentes do crime que negavam, mas que, além de inocentes, tinham o merecimento de preferirem morrer, a confessarem-se culpados de um crime do qual estavam inocentes!...”
E a inocência destes infelizes impõe-se a todos os espíritos. Era lá possível que um homem culpado, com a certeza de salvar a vida, confessando, persistisse em negar, e antes quisesse ser queimado, do que confessar uma verdade, cuja confissão o livrava da morte? Não. Só a inocência podia gerar virtude capaz daquele sacrifício!
Bibliografia:
História das Inquisições - Edição de 1822
Arte Religiosa em Portugal. - Emílio Biel &C.ª - Porto
Herculano (Alexandre) Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal