O imperador Constantino é o verdadeiro fundador da ideologia do poder eclesiástico
Até o Concilio de Nicéia (325), o poder dos bispos é ainda espiritual, mas com tendências políticas e económicas simuladas na atenção carinhosa para com o imperador Constantino, que, em 313, mediante o Edito de Milão, notificou indiretamente este poder.
Em 325, Constantino amarra a si numa forma sútil, e na esteira de muitas regalias, todos esses bispos. Mas ninguém pense que o imperador fosse cristão! Podemos ler em "Historiae Augustae" (Loeb Library seyerus Alex"; 51) que, na sua corte gaulesa Constantino "vivia rodeado de filósofos pagãos" e, mesmo depois de Nicéia, pouco se interessou por problemas religiosos e muito menos por diferenças teológicas.
O que ele queria era a unidade dos bispos cristãos, pois havia percebido que eles eram o maior instrumento político de que então ele podia dispor para realizar a monarquia absoluta e o fato de colocar o correio do império a serviço deles era já um destes meios para realizar seus planos.
Como era a Roma cristã nos séculos III e IV? O único bispo desta época que possa interessar à história cristã é Silvestre I. Mas, antes dele, a História – lembra Dinis, que nasceu na Grécia e foi bispo de 259 a 268.
Nesses anos, foi condenado Paulo de Samosata, aquele do trono - com o dossel, que, embora bispo, dizia que Jesus era um simples homem e não Deus.
Em 270, morreu também Plotino, o fundador do Neoplatonismo, que, como Sócrates e Platão, afirmava que qualquer pessoa, pela simples luz da razão, podia elevar-se até Deus, que, contrariamente ao que pregavam os cristãos, não tinha forma alguma, nem podia ser definido por palavras humanas.
Plotino era contrário a todas as seitas cristãs, principalmente os gnósticos, que acreditavam em espíritos e demónios secundários. Antes de morrer, disse aos seus discípulos: "Vou reunir o que existe de divino em mim com o que existe de divino no universo" (veja meu livro: "Plotino e a alma no tempo", Ufes - F.C.A.A.; 1990).
Então veio Felix I, que foi bispo de Roma de 268 e 274. Homem bom, mas de nenhuma importância política. Mais importante é o que aconteceu com o bispo Eutiquiano (275-283), quando apareceu em Roma a religião de Manes que, nesta época, fundou no Oriente o Maniqueísmo.
Manes ensinava que existiam dois princípios opostos: um, autor da luz e de tudo o que é bom; outro, autor das trevas, da matéria e do mal. Falava de si como sendo o Espírito Santo enviado por
Jesus. Ensinava que Jesus só tinha aparências humanas.
Manes dizia que a matéria, os corpos, os reis, os magistrados e outros seres, eram criações do princípio mau. Por isso, ele proibia os casamentos e as guerras assim como comer carne e beber vinho.
Manes dizia que Jesus era o Sol. Este ponto é que nos interessa, porque, até o fim de sua vida, Constantino adorou o Sol como seu Deus e é nesta época que os cristãos começam a chamar Jesus de "Christus Sol" como que para agradar Constantino.
Paulus Osórius, sacerdote e historiador espanhol, escreveu, no ano de 416 d.C, uma "História Universalis" (que evidentemente só podia compreender o império romano) em sete livros e em língua latina. Pois bem, eis o que ele escreve ainda no primeiro livro, quanto às condições do império: "Os exércitos dispunham, à vontade, do poder supremo e os chefes militares apoderavam-se alternadamente do poder supremo (...). Foi no execrável reinado destes tiranos que todos os males caíram a um tempo sobre o império: a Bretanha foi subjugada pelos calcedónios e pelos saxões; a Gallia, pelos Francos, alemães e borguinhões; a Itália, pelos alemães, suevos, quados e marcomanos; a Macedónia, a Média e a Trácia pelos Godos, Hérulos e Sármatas; os persas invadiram a costa da Síria.
Finalmente, a guerra civil, a fome, a peste, arruinavam as cidades e aniquilavam as populações que tinham escapado ao ferro dos bárbaros. As cidades foram arrasadas por terremotos que duravam dias; o mar saiu do seu leito e inundou províncias inteiras. Em Núbia, na Acaia e em Roma, a terra abriu-se e engoliu campos e casas. A peste matava diariamente milhares de homens".
Mesmo dando um desconto de 50%, este relato dá para pensar...
Hérmias Sozômenos, que morreu na Palestina em 443 d.C, escreveu uma História Eclesiástica que não é diferente desta acima citada.
Mas os únicos que não se impressionavam com a situação geral eram os bispos e os padres.
Escreve Eusébio, na sua "História Eclesiástica", a propósito do estado social e religioso do fim do III século e começo do IV:
“A doutrina de Jesus Cristo era muito estimada e glorificada entre os gregos e bárbaros. A Igreja gozava de
livre exercício do seu culto; os imperadores tinham vivo afeto aos cristãos e davam-lhes o governo das províncias, sem os obrigarem a sacrificar aos ídolos; muitos cristãos estavam até espalhados pelas cortes dos príncipes e tinham permissão de cumprir, junto com suas famílias, os deveres da religião cristã. (...)“Os bispos eram venerados e queridos dos povos e dos governadores das províncias. Inúmeros pagãos vinham todos os dias fazer profissão de fé cristã. Em todas as cidades se construíam igrejas e os templos já eram pequenos demais para a quantidade de fiéis que a eles concorriam.
“Mas o excesso de liberdade produziu a quebra da disciplina e então começou a guerra por meio de palavras ofensivas entre bispos e padres, que, excitados uns contra os outros, provocaram rixas e desordens. (...)
Os padres, desprezando as santas regras de piedade, tiveram entre si contestações e disputas; fomentaram ódios e inimizades, disputando os primeiros lugares como se fossem dignidades seculares".
É novamente a ideologia do poder!
Em 314 d.C. é eleito o bispo de Roma Silvestre I (314-335), que, na literatura cristã, ficou com a glória de ter convertido Constantino e do qual teria recebido em doações quase toda a Europa Ocidental. (Will Durant; Co,. Ed. Moc; SP; 1955; v. VII; pg. 71).
Quem era este Silvestre I, grande bajulador do imperador? Nasceu em Roma e "subiu ao trono episcopal com dossel" em 314, justamente um ano após o Edito de Milão.
A Igreja de Roma e quase todas as demais Igrejas estavam se enriquecendo e tudo parecia normal, quando apareceu Ario, natural da Síria, que ensinava ser Jesus somente um homem, ou, melhor: no homem-Jesus veio "habitar" o Logos, que é o primeiro e mais alto de todos os seres criados. Então Jesus se tornou o Filho "Primogénito", como escreveu São Paulo, mas que não se pode confundir com o Deus eterno.
Eusébio, bispo de Nicomedia, e outros bispos apoiavam Ário, mas outros, e particularmente um tal de Alexandre, o combatiam.
Então Constantino convidou Ário e Alexandre para discutirem calmamente como filósofos. Eusébio de Cesareia nos guardou a carta do imperador ("Vida de Constantino"; II; 63, 70):
"Eu me propus fixar numa só forma as ideias que todas as pessoas têm a respeito da Divindade, porque sinto profundamente que, se eu pudesse unir os homens nesse ponto, a condução dos negócios públicos me ficaria muito facilitada. Mas, ai! Vim saber de recentes disputas teológicas! E a causa me parece insignificante e indigna de tão feroz debate. Tu, Alexandre (...) e tu, Ário, se tiveste tais pensamentos devias ter guardado silêncio (...) já que não passam de problemas que só a vadiação sugere para a ginástica mental. São coisas tolas, próprias de crianças sem experiência e não de sacerdotes de boa cabeça".
Mas, na verdade, começou uma verdadeira guerra entre bispos que apoiavam Ário e outros que o condenavam.
Não havia mais paz no império e isto preocupou o imperador Constantino, que, sem pedir licença a bispo algum, exigiu que todos os bispos cristãos se reunissem em Nicéia para resolver o problema.
Era o ano de 325. Nicéia, como se sabe, é na Turquia e não em Roma... Aliás, o bispo de Roma, Silvestre, nem foi avisado. Eusébio (op. cit.) diz que Constantino "ouvia pacientemente os debates" e "moderava a violência dos contendores".
No fim, [Constantino] cansado de tantas abstrações e ameaçando aqueles que eram causa de divisões, mandou que se contasse quantos acreditavam na divindade de Jesus.
Eram presentes ao todo 318 bispos (o bispo de Roma não estava presente) auxiliados por um grande número de padres" (Eusébio: "Nicéia"; 6). 301 bispos levantaram o braço concordando com a tese de Alexandre, condenando Ário.
Após novas ameaças de Constantino, 313 bispos levantaram o braço. Novas ameaças: 316 bispos concordaram; apenas dois bispos se negaram: foram banidos do império. E Jesus foi declarado Deus por contagem de votos.
Mas todos entenderam que a sobrevivência da Igreja dependia da unidade da doutrina e disciplina, e sobretudo entenderam que, naquele dia, estava selada a aliança do cristianismo com o Império Romano e a maior prova disto foi que Constantino determinou que quem desobedecesse às determinações de Nicéia fosse punido pela autoridade secular, porque aquelas determinações eram "dogmas (leis) imperiais".
Os desobedientes se tornaram hereges, o que era crime contra as leis imperiais e contra a religião.
O Concilio de Nicéia (com a permissão do imperador) concedeu ao bispo de Alexandria os mesmos privilégios de honra de que gozava o bispo de Roma, cuja autoridade, porém, limitava-se só à sua diocese. Mas assim mesmo o bispo de Roma ficou satisfeitíssimo por ter recebido o palácio do Latrão e algumas terras, além de uma boa mesada.
Em seguida, Constantino mandou destruir todos os livros que apresentavam Jesus como homem e não como Deus. Em sinal de gratidão pelas conclusões de Nicéia, Constantino, embora pagão, recebeu dos bispos o título de “episcopus ad extra” (o bispo de fora) e doravante será ele quem julgará os bispos; convocará e presidirá concílios e resolverá questões religiosas.
Depois de Nicéia as leis eclesiásticas tiveram valor de leis cíveis, por isso tiveram o nome de "dogmas".
Com o imperador Teodósio (347-395) os bispos e os padres se tornam oficiais estatais (381) e são pagos pelo governo imperial. Teodósio mandou fechar todos os velhos templos pagãos e permitiu ao clero assumir a magistratura e os cargos municipais.
Deste modo, já começava a realizar-se a ideologia do poder pelo que tocava os bispos de Roma: um poder que se tornará sempre mais forte daqui a pouco, quando os bárbaros irão invadir a Itália em sucessivas hordas.
O bispo de Roma será praticamente a única autoridade "imperial" a tratar com Átila, Alarico, Genserico... e, assim, seu poder espiritual começará a tornar-se poder político.
Continua na próxima postagem desta seção...
Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES
Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.
Nota do IASD Em Foco
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