15/04/2012

A Liberdade Religiosa no Século XVI.

Os princípios dos Reformadores Protestantes deviam afastá-los de qualquer simpatia para com a velha ordem de perseguição religiosa. A própria revolta em que se empenharam envolvia o direito de dissidência religiosa e de juízo privado. A sua incoerência é uma nódoa impressa no movimento da Reforma; mas é preciso que se leve a crédito do movimento que o número de condenados à morte, por opiniões religiosas, pelas autoridades protestantes, foi relativamente insignificante; e entre os protestantes sempre houve escritores que condenaram o constrangimento religioso. Lutero iniciou mui nobremente as suas 95 Teses, declarando que é prática anticristã o uso da espada contra os heréticos. O Espírito de Deus não permite tal coisa. No seu estudo sobre o Estado Civil, 1523, e outra vez na sua exposição da parábola do trigo e do joio, 1528, Lutero reafirmou a opinião. A partir de 1533, quando expôs a mesma parábola, ele repudiou os conceitos anteriores. Insistindo em medidas de violência contra os Anabaptistas e outros sectários, foi movido, em parte, e não totalmente, pelo conceito do carácter sagrado da ordem civil e do dever de obediência às autoridades civis. Do outro lado, Leão X e os líderes do velho sistema agiam sob princípio diverso, qual o de que os dissidentes religiosos não tinham direito à vida. Aleander escreveu que "os heréticos devem ser punidos com vara de ferro e fogo, e os seus corpos devem ser destruídos para que as almas possam salvar-se". Mesmo Erasmo desejava que Lutero fosse queimado vivo. Com toda a sua violência de temperamento, o Reformador protestante percebeu a inconsistência da sua atitude - e por vezes regressou aos conceitos mais suaves do seu período inicial. Sem hesitação se opôs ao apelo às armas, para sustentar a causa protestante!
A parte que Calvino tomou na execução de Servetus é citada como prova de que os Reformadores não repudiaram a política religiosa da Idade Média. O erudito católico romano, Paulus, intitula o capítulo sobre o Reformador - "Calvino ao serviço da Inquisição Papal" - desacreditando ao mesmo tempo a Calvino e condenando a política inquisitorial dos pontífices medievais. Não há suficiente desculpa para as suas medidas rígidas. Servetus foi condenado à morte por acusações de ordem religiosa e Calvino expressou a sua fria aprovação a tais sentenças, no tratado que subsequentemente escreveu em defesa da execução do espanhol e da pena de morte em que incorrem os transgressores religiosos. O sucessor de Calvino, Beza, também defendeu a pena de morte, baseado no mesmo princípio. A Segunda Confissão Helvética e outros Padrões Reformados do Credo consideraram crimes capitais a idolatria e outros pecados contra a primeira tábua do Código Mosaico.
A diferença que houve entre os Reformadores e os pontífices romanos, no tratamento dispensado aos dissidentes religiosos, foi esta: os Reformadores não foram unânimes sobre o assunto e o número de vítimas condenadas à morte pelos tribunais protestantes foi relativamente pequeno. A Sé romana foi intolerante desde o princípio e os sucessores de Leão X - Paulo III, Paulo IV, Pio V e Gregório XIII fizeram tudo quanto estava ao seu alcance, pela espada e pelo suborno, pelos métodos da Inquisição, pela guerra no mar, e na terra, para destruir os líderes do Protestantismo e esmagar o movimento protestante. Escrevendo a Chiergato em 1522, Adriano VI tratou a "liberdade evangélica" como o disfarce sob o qual Lutero desenvolvia o que se estava processando. Paulo III foi responsável pela divisão da Alemanha em dois campos de batalha e Calvino apreciou o caso com fidelidade, quando escreveu a Carlos V que Paulo "não havia desencadeado outra coisa senão sangue e morticínio, como vós mesmos podeis testificar. Tivésseis amparado a sua fúria, e a Alemanha de há muito teria sido afogada no seu próprio sangue". Nenhuma palavra saiu do Vaticano para reprovar os jesuítas, que
lançaram mão de todas as medidas conhecidas pela violência humana para exterminar os novos sectários. Os jesuítas provaram ser, como disse Lord Acton, "os inimigos mais implacáveis que a liberdade mental e moral jamais havia conhecido". O tribunal romano da Inquisição, criado por Paulo III, teve a concorrência aberta de Inácio de Loyola, que também excitou o pontífice a reavaliar o mandamento de Inocente III, proibindo que os médicos atendessem aos enfermos, enquanto não se confessassem - Döllinger-Reusch, p. 331. Principalmente sob Paulo IV, 1555-1559, a própria Roma. Se transformou em cenário de prisão e execução de heréticos. Recentes escritores, como Balmes - p. 208 - e um colaborador da Revista de Dublin, 1850, afirmaram que a cidade papal nunca assistiu a uma execução por ofensas religiosas; mas o contrário foi provado pelas investigações de Döllinger, Pastor e Lord Acton - todos historiadores católicos romanos. Luteranos, Calvinistas, Valdenses, Anabatistas e Livres-pensadores foram submetidos à morte. Lord Acton citou Pistoja, um capuchinho, a pregar que os heréticos estavam sendo diariamente enforcados ou esquartejados em Roma. Em 1567, a Inquisição isentou de censuras os membros do clero que faziam parte dos tribunais de Veneza e de outras cidades italianas, caso votassem pela aplicação da pena de morte. Até hoje os documentos preservados na casa da Inquisição Romana continuam trancados, mesmo a Pastor, que disse que o número das suas vítimas jamais será conhecido. Pio IV louvou, em 1562, a lei da República de Lucca, que, "agindo sob pressão de Roma" Prometia a recompensa de 300 libras a quem matasse um refugiado protestante. Se nos voltarmos para a Inglaterra, ali assistiremos as cenas sangrentas ordenadas sob Maria Túdor, cujo marido, Filipe II, teria aprazivelmente introduzido no reino o sistema espanhol integral dos autos-de-fé. No reinado de Isabel, o papa, os jesuítas ingleses e Filipe uniram-se, no esforço de sufocar a heresia inglesa pela guerra declarada, incitando a rebelião entre os súbditos da rainha e tramando a morte da mesma rainha. É difícil, senão impossível, compreender como os estatutos ingleses, dirigidos contra os jesuítas e seminaristas de Douai e Rheims, poderiam deixar de os declarar "conspiradores públicos e confessos, culpados de alta traição".
As perseguições religiosas na Holanda, França e Boémia enegrecem as páginas da história moderna. Nas províncias holandesas, Filipe II condenou a todos, com excepção de uma lista selecionada, como heréticos e dignos de punição. Mesmo crianças foram entregues as chamas, por lerem as Escrituras. O papa deu sua aprovação as medidas sangrentas, enviando um chapéu ornado de jóias e uma espada ao duque de Alba, em recompensa pela execução judicial de 18.000 pessoas, por motivos religiosos, durante o exercício de seu mandato - 1567-1573. A mensagem que lhe foi enviada pedia que o governador-geral "se lembrasse, ao colocar o chapéu na cabeça, que por ele ficava resguardado, como por um escudo de justiça, constituindo ele um penhor da coroa celestial preparada para todos os príncipes que sustentarem a fé católica romana". A legenda gravada na espada dizia: "Recebe esta santa espada como dádiva de Deus, e com a qual abateras os adversários de meu povo de Israel".
Na França, a política de perseguição se inaugurou quando Francisco I assistiu, em Paris, a queima de um grupo de seus súbditos. A ordem dos jesuítas foi, em parte, pelos seus ensinos, responsável pelo assassínio de dois reis de França e pelo massacre do dia de S. Bartolomeu, em 1572. Pio escreveu ao conde Santifiore: "Não faças prisioneiro nenhum huguenote; mata a todo que cair em tuas mãos". Segundo Lord Acton, o massacre não foi "um ato súbito e sem premeditação". Três anos antes do evento, o pontífice escrevia ao rei da França: "Quando Deus vos der e a nós a vitória, será de vosso dever punir os heréticos com toda a severidade, vingando assim não só vossos próprios agravos, mas os de Deus Omnipotente". Citou o exemplo de Saul, que foi punido por ter poupado aos Amalequitas, e adiante escreveu que "sob nenhuma circunstância e por nenhuma consideração devem ser poupados os inimigos de Deus". Depois o pontífice romano escreveu a Carlos IX para que prosseguisse na obra de morte, até que todos os huguenotes se retratassem ou perecessem - Acton, Cor. 122:135. A chegada a Roma das notícias do massacre de S. Bartolomeu foi como o sinal para o regozijo. Os canhões de Santo Ângelo deram salvas; foi cantado "Te Deum" na igreja de S. Marcos e uma medalha de bronze foi cunhada, tudo por ordem de Gregório XIII.  De um lado da medalha está representado um anjo, empunhando uma cruz e uma espada nua, a dirigir os assassinos nas ruas de Paris, e contendo as palavras - "O massacre dos huguenotes" -, Ugonotorum strages. Do outro lado aparece a efígie de Gregório. 0 Pontífice escreveu a Carlos IX que "o massacre constituía para ele, papa, melhores notícias do que seriam as de cem vitórias de Lepanto" - a vitória decisiva sobre a armada maometana, em 1571. Mais tarde Gregório demonstrou seu entusiasmo, chamando ao Vaticano o artista Vasari para fazer a pintura colorida da ocorrência - e pelo menos uma de suas telas ainda permanece no palácio papal. Gregório XIV enviou. 4.000 homens para auxiliar o extermínio do partido huguenote.
O cardeal Gibbons, que expressa "repugnância por aquela matança desumana", e outros escritores católicos romanos, continuam na tentativa de eximir o pontifique de ter-se exultado com a tragédia ds S. Bartolomeu: diz o cardeal que "a religião nada tinha a ver com ela e Gregório a ignorava inteiramente". O Dr. Milner, tentando absolver o papa, atribui o fato a "negra vingança de Carlos IX e a ambição cruel de Catarina de Medici". Esses e outros escritores romanos não fazem menção da medalha, nem da pintura do Vaticano.
A defesa argúi que os papas e as cortes eclesiásticas nunca pronunciaram efectivamente sentença de morte; mas, ainda que se baseasse em fundamentos sólidos, o argumento não seria procedente; eles sabiam que a execução da pena de morte, pelo magistrado civil, devia tão certamente seguir-se a sentença eclesiástica de heresia, como ao golpe sucede a ferida. Jamais publicaram um decreto oficial, intimando o Estado a revogar suas leis. Um escritor do século XI explicou a conduta do papa, mas o não inocentou, ao escrever que "nosso papa não mata nem condena a ninguém a morte física, mas a lei submete a morte aqueles a quem o papa consente sejam levados ao patíbulo: matam-se a si mesmos os que praticam as coisas que os tornam sujeitos a morte"- Martène, Thes. V:1741. Cinco séculos depois, Sander, em sua Rocha da Igreja, pág. 103, assume atitude semelhante, ao defender os papas com afirmar que o "bispo de Roma nunca puniu, com a espada material, a pessoa alguma que tenha abandonado a igreja, mas somente pune com as censuras eclesiásticas". O tribunal da Inquisição foi, do começo ao fim, expediente papal, ou teve, como no caso da corte espanhola, a sane, ao papal. Gregório IX efectivamente exigia do senador romano ao tomar posse, o juramento de que prenderia e puniria heréticos oito dias depois que fosse proferida a sentença eclesiástica. Numa carta a Maria Gladstone, Lord Acton formulou o juízo segundo o qual "os papas foram, através da Inquisição, não somente assassinos por atacado, mas fizeram do princípio homicida uma lei da igreja cristã e uma condição de salvação".
Na Boémia, o protestantismo foi, segundo todas as aparências, aniquilado. Esse ato constituiu a obra-prima dos jesuítas. Pela destruição dos livros sagrados e pelas chamas, e por outros métodos de morte e de guerra, lutaram contra João Huss e contra sua memória. Quatrocentos mil cidadãos da Boémia deixaram, ao que se diz, a terra natal, e Döllinger afirma que, enquanto noventa por cento da população eram, ao começo da perseguição, hussitas, nem um por cento se deixou, no encerramento dela. Quando se pôs termo a guerra dos Trinta Anos, em 1648, com o Tratado de Westphalia, Inocência X, longe de aplaudir a cessação das hostilidades que haviam desolado a Europa central, condenou o tratado com uma arenga cheia de adjectivos latinos, sendo que a cláusula que estipulava que os súbditos seguissem a religião de seus príncipes, o pontífice a denunciou como "revogação da soberania de Roma e, portanto, sem efeito, inepta, iníqua, injusta, condenada, reprovada e para todo o sempre perfeitamente nula - viribus et affectu vacua omnino fuisse et esse et perpetuo fore". Embora parecesse que, por obra dos jesuítas, o hussitismo tivesse sido, na Boémia, sepultado em túmulo tão profundo quanto as entranhas da terra, uma nova nação surgiu, a qual inscreveu a liberdade religiosa entre suas leis e teve como presidente um admirador e partidário franco de Huss. Grande parte do povo rompeu com a autoridade romana. Bíblias escondidas durante séculos tem sido trazidas para a luz do dia e Huss foi e é glorificado como herói nacional. Em 1918, por ocasião do tricentenário do início da Guerra dos Trinta Anos e da execução, em Praga, de vinte e sete nobres hussitas, o povo derrubou, a orgulhosa estatua de Maria, erigida na praça pública, e perto desse lugar se ergueu um grande monumento a memória de Huss.