Por entre as trevas que
baixaram à Terra durante o longo período da supremacia papal, a luz da verdade
não poderia ficar inteiramente extinta. Em cada época houve testemunhas de Deus
- homens que acalentavam fé em Cristo como único mediador entre Deus e o homem,
que mantinham a Escritura Sagrada como a única regra de vida, e santificavam o
verdadeiro sábado. Quanto o mundo deve a estes homens, a posteridade jamais
saberá. Foram estigmatizados como hereges, impugnados os seus motivos,
criticado o seu caráter, e suprimidos, difamados ou mutilados os seus escritos.
No entanto, permaneceram firmes, e de século em século mantiveram a fé em sua
pureza como sagrado legado às gerações vindouras.
A história do povo de
Deus durante os séculos de trevas que se seguiram à supremacia de Roma, está
escrita no Céu, mas pouco espaço ocupa nos registros humanos. Poucos traços de
sua existência se podem encontrar, a não ser nas acusações de seus
perseguidores. Foi tática de Roma obliterar todo vestígio de dissidência de
suas doutrinas ou decretos. Tudo que fosse herético, quer pessoas quer
escritos, procurava ela destruir. Expressões de dúvida ou questões quanto à
autoridade dos dogmas papais eram suficientes para tirar a vida do rico ou
pobre, elevado ou humilde. Roma se esforçava também por destruir todo registro
de sua crueldade para com os que discordavam dela. Os concílios papais
decretavam que livros ou escritos contendo relatos desta
natureza deviam ser
lançados às chamas. Antes da invenção da imprensa, os livros eram pouco
numerosos, e de forma desfavorável à preservação; portanto, pouco havia a
impedir que os romanistas levassem a efeito o seu desígnio.
Nenhuma igreja dentro dos
limites da jurisdição romana ficou muito tempo sem ser perturbada no gozo da
liberdade de consciência. Mal o papado obtivera poder, estendeu os braços para
esmagar a todos os que se recusassem a reconhecer-lhe o domínio; e, uma após
outra, submeteram-se as igrejas ao seu governo.
Na Grã-Bretanha o
primitivo cristianismo muito cedo deitou raízes. O evangelho, recebido pelos
bretões nos primeiros séculos, não se achava então corrompido pela apostasia
romana. A perseguição dos imperadores pagãos, que se estendeu mesmo até àquelas
praias distantes, foi a única dádiva que a primeira igreja da Bretanha recebeu
de Roma. Muitos dos cristãos, fugindo da perseguição na Inglaterra, encontraram
refúgio na Escócia; daí a verdade foi levada à Irlanda, sendo em todos estes
países recebida com alegria.
Quando os saxões
invadiram a Bretanha, o paganismo conseguiu predomínio. Os conquistadores
desdenharam ser instruídos por seus escravos, e os cristãos foram obrigados a
retirar-se para as montanhas e os pântanos. Não obstante, a luz por algum tempo
oculta continuou a arder. Na Escócia, um século mais tarde, brilhou ela com um
fulgor que se estendeu a mui longínquas terras. Da Irlanda vieram o piedoso
Columba e seus colaboradores, os quais, reunindo em torno de si os crentes
dispersos da solitária ilha de Iona, fizeram desta o centro de seus trabalhos
missionários. Entre estes evangelistas encontrava-se um observador do sábado
bíblico, e assim esta verdade foi introduzida entre o povo. Estabeleceu-se uma
escola em Iona, da qual saíram missionários, não somente para a Escócia e
Inglaterra, mas para a Alemanha, Suíça e mesmo para a Itália.
Roma, porém, fixara os
olhos na Bretanha e resolvera pô-la sob sua supremacia. No século VI seus
missionários empreenderam a conversão dos pagãos saxões. Foram recebidos com
favor pelos orgulhosos bárbaros, e induziram muitos milhares a professar a fé
romana. O trabalho progredia e os dirigentes papais e seus conversos
encontraram os cristãos primitivos. Eloquente contraste se apresentou. Os
últimos eram simples, humildes e de caráter, doutrina e maneiras segundo as
Escrituras, ao passo que os primeiros manifestavam a superstição, a pompa e a
arrogância do papado. O emissário de Roma exigiu que estas igrejas cristãs
reconhecessem a supremacia do soberano pontífice. Os bretões mansamente
replicaram que desejavam amar a todos os homens, mas que o papa não tinha
direito à supremacia na igreja, e que eles poderiam prestar-lhe somente a
submissão devida a todo seguidor de Cristo. Repetidas tentativas foram feitas
para se conseguir sua adesão a Roma; mas esses humildes cristãos, espantados
com o orgulho ostentado por seus emissários, firmemente replicavam que não
conheciam outro mestre senão a Cristo. Revelou-se, então, o verdadeiro espírito
do papado. Disse o chefe romano: "Se não receberdes irmãos que vos trazem
paz, recebereis inimigos que vos trarão guerra. Se vos não unirdes conosco para
mostrar aos saxões o caminho da vida, recebereis deles o golpe de morte."
- História da Reforma do Século XVI, D'Aubigné. Não era isto simples ameaça.
Guerra, intriga e engano foram empregados contra as testemunhas de uma fé
bíblica, até que as igrejas da Bretanha foram destruídas ou obrigadas a
submeter-se à autoridade do papa.
Em terras que ficavam
além da jurisdição de Roma, existiram por muitos séculos corporações de
cristãos que permaneceram quase inteiramente livres da corrupção papal. Estavam
rodeados de pagãos e, no transcorrer dos séculos, foram afetados por seus
erros; mas continuaram a considerar a Escritura Sagrada como a única regra de
fé, aceitando muitas de suas verdades. Estes cristãos acreditavam na
perpetuidade da lei de Deus e observavam o sábado do quarto mandamento. Igrejas
que se mantinham nesta fé e prática, existiram na África Central e entre os arménios,
na Ásia.
Mas dentre os que
resistiram ao cerco cada vez mais apertado do poder papal, os valdenses
ocuparam posição preeminente. A falsidade e corrupção papal encontraram a mais
decidida resistência na própria terra em que o papa fixara a sede. Durante
séculos as igrejas do Piemonte mantiveram-se independentes; mas afinal chegou o
tempo em que Roma insistiu em submetê-las. Depois de lutas inúteis contra a
tirania, os dirigentes destas igrejas reconheceram relutantemente a supremacia
do poder a que o mundo todo parecia render homenagem. Alguns houve, entretanto,
que se recusaram a ceder à autoridade do papa ou do prelado. Estavam decididos
a manter sua fidelidade a Deus, e preservar a pureza e simplicidade de fé.
Houve separação. Os que se apegaram à antiga fé, retiraram-se; alguns,
abandonando os Alpes nativos, alçaram a bandeira da verdade em terras
estrangeiras; outros se retraíram para os vales afastados e fortalezas das
montanhas, e ali preservaram a liberdade de culto a Deus.
A fé que durante muitos
séculos fora mantida e ensinada pelos cristãos valdenses, estava em assinalado
contraste com as falsas doutrinas que Roma apresentava. Sua crença religiosa
baseava-se na Palavra escrita de Deus - o verdadeiro documento religioso do
cristianismo. Mas aqueles humildes camponeses, em seu obscuro retiro, excluídos
do mundo e presos à labuta diária entre seus rebanhos e vinhedos, não haviam
por si sós chegado à verdade em oposição aos dogmas e heresias da igreja
apóstata. A fé que professavam não era nova. Sua crença religiosa era a herança
de seus pais. Lutavam pela fé da igreja apostólica - a "fé que uma vez foi
dada aos santos". Jud. 3. "A igreja no deserto" e não a
orgulhosa hierarquia entronizada na grande capital do mundo, era a verdadeira
igreja de Cristo, a depositária dos tesouros da verdade que Deus confiara a Seu
povo para ser dada ao mundo.
Entre as principais
causas que levaram a igreja verdadeira a separar-se da de Roma, estava o ódio
desta ao sábado bíblico. Conforme fora predito pela profecia, o poder papal
lançou a verdade por terra. A lei de Deus foi lançada ao pó, enquanto se
exaltavam as tradições e costumes dos homens. As igrejas que estavam sob o
governo do papado, foram logo compelidas a honrar o domingo como dia santo. No
meio do erro e superstição que prevaleciam, muitos, mesmo dentre o verdadeiro
povo de Deus, ficaram tão desorientados que ao mesmo tempo em que observavam o
sábado, afastavam-se do trabalho também no domingo. Isso, porém, não satisfazia
aos chefes papais. Exigiam não somente que fosse santificado o domingo, mas que
o sábado fosse profanado; e com a mais violenta linguagem denunciavam os que
ousavam honrá-lo. Era unicamente fugindo ao poder de Roma que alguém poderia em
paz obedecer à lei de Deus.
Os valdenses foram os
primeiros dentre os povos da Europa a obter a tradução das Sagradas Escrituras.
Centenas de anos antes da Reforma, possuíam a Bíblia em manuscrito, na língua
materna. Tinham a verdade incontaminada, e isto os tornava objeto especial do
ódio e perseguição. Declaravam ser a Igreja de Roma a Babilónia apóstata do
Apocalipse, e com perigo de vida erguiam-se para resistir a suas corrupções.
Opressos pela prolongada perseguição, alguns comprometeram sua fé, cedendo
pouco a pouco em seus princípios distintivos, enquanto outros sustentavam firme
a verdade. Durante séculos de trevas e apostasia, houve alguns dentre os
valdenses que negavam a supremacia de Roma, rejeitavam o culto às imagens como
idolatria e guardavam o verdadeiro sábado. Sob as mais atrozes tempestades da
oposição conservaram a fé. Perseguidos embora pela espada dos saboianos
(França) e queimados pela fogueira romana, mantiveram-se sem hesitação ao lado
da Palavra de Deus e de Sua honra.
Por trás dos elevados
baluartes das montanhas - em todos os tempos refúgio dos perseguidos e
oprimidos - os valdenses encontraram esconderijo. Ali, conservou-se a luz da
verdade a arder por entre as trevas da Idade Média. Ali, durante mil anos,
testemunhas da verdade mantiveram a antiga fé.
Deus providenciara para
Seu povo um santuário de majestosa grandeza, de acordo com as extraordinárias
verdades confiadas à sua guarda. Para os fiéis exilados, eram as montanhas um
emblema da imutável justiça de Jeová. Apontavam eles a seus filhos as alturas
sobranceiras, em sua imutável majestade, e falavam-lhes dAquele em quem não há
mudança nem sombra de variação, cuja Palavra é tão perdurável como os montes
eternos. Deus estabelecera firmemente as montanhas e as cingira de fortaleza;
braço algum, a não ser o do Poder infinito, poderia movê-las do lugar. De igual
maneira estabelecera Ele a Sua lei - fundamento de Seu governo no Céu e na
Terra. O braço do homem poderia atingir a seus semelhantes e destruir-lhes a
vida; mas esse braço seria tão impotente para desarraigar as montanhas de seu
fundamento e precipitá-las no mar, como para mudar um preceito da lei de Jeová
ou anular qualquer de Suas promessas aos que Lhe fazem a vontade. Na fidelidade
para com a Sua lei, os servos de Deus deviam ser tão firmes como os outeiros
imutáveis.
As montanhas que cingiam
os fundos vales eram testemunhas constantes do poder criador de Deus e
afirmação sempre infalível de Seu cuidado protetor. Esses peregrinos aprenderam
a amar os símbolos silenciosos da presença de Jeová. Não condescendiam com
murmurações por causa das dificuldades da sorte; nunca se sentiam abandonados
na solidão das montanhas. Agradeciam a Deus por haver-lhes provido refúgio da
ira e crueldade dos homens. Regozijavam-se diante dEle na liberdade de prestar
culto. Muitas vezes, quando perseguidos pelos inimigos, a fortaleza das
montanhas se provara ser defesa segura. De muitos rochedos elevados entoavam
eles louvores a Deus e os exércitos de Roma não podiam fazer silenciar seus
cânticos de ações de graças.
Pura, singela e fervorosa
era a piedade desses seguidores de Cristo. Os princípios da verdade,
avaliavam-nos eles acima de casas e terras, amigos, parentes e mesmo da própria
vida. Semelhantes princípios ardorosamente procuravam eles gravar no coração
dos jovens. Desde a mais tenra infância os jovens eram instruídos nas
Escrituras, e ensinava-se-lhes a considerar santos os requisitos da lei de
Deus. Sendo raros os exemplares das Escrituras Sagradas, eram suas preciosas
palavras confiadas à memória. Muitos eram capazes de repetir longas porções
tanto do Antigo como do Novo Testamento. Os pensamentos de Deus associavam-se
ao sublime cenário da natureza e às humildes bênçãos da vida diária.
Criancinhas aprendiam a olhar com gratidão a Deus como o Doador de toda mercê e
conforto.
Os pais, ternos e
afetuosos como eram, tão sabiamente amavam os filhos que não permitiam que se
habituassem à condescendência própria. Esboçava-se diante deles uma vida de
provações e dificuldades, talvez a morte de mártir. Eram ensinados desde a
infância a suportar rudezas, a sujeitar-se ao domínio, e contudo a pensar e
agir por si mesmos. Muito cedo eram ensinados a encarar responsabilidades, a
serem precavidos no falar e a compreenderem a sabedoria do silêncio. Uma
palavra indiscreta que deixassem cair no ouvido dos inimigos, poderia pôr em
perigo não somente a vida do que falava, mas a de centenas de seus irmãos;
pois, semelhantes a lobos à caça da presa, os inimigos da verdade perseguiam os
que ousavam reclamar liberdade para a fé religiosa.
Os valdenses haviam
sacrificado a prosperidade temporal por amor à verdade, e com paciência
perseverante labutavam para ganhar o pão. Cada recanto de terra cultivável
entre as montanhas era cuidadosamente aproveitado; fazia-se com que os vales e
as encostas menos férteis das colinas também produzissem. A economia e a severa
renúncia de si próprio formavam parte da educação que os filhos recebiam como
seu único legado. Ensinava-se-lhes que Deus determinara fosse a vida uma
disciplina e que suas necessidades poderiam ser supridas apenas mediante o
trabalho pessoal, previdência, cuidado e fé. O processo era laborioso e fatigante,
mas salutar, precisamente o de que o homem necessita em seu estado decaído -
escola que Deus proveu para o seu ensino e desenvolvimento. Enquanto os jovens
se habituavam ao trabalho e asperezas, a cultura do intelecto não era
negligenciada. Ensinava-se-lhes que todas as suas capacidades pertenciam a
Deus, e que deveriam todas ser aperfeiçoadas e desenvolvidas para o Seu
serviço.
As igrejas valdenses, em
sua pureza e simplicidade, assemelhavam-se à igreja dos tempos apostólicos.
Rejeitando a supremacia do papa e prelados, mantinham a Escritura Sagrada como
a única autoridade suprema, infalível. Seus pastores, diferentes dos altivos
sacerdotes de Roma, seguiam o exemplo de seu Mestre que "veio não para ser
servido, mas para servir". Alimentavam o rebanho de Deus, guiando-os às
verdes pastagens e fontes vivas de Sua santa Palavra. Longe dos monumentos da
pompa e orgulho humano, o povo congregava-se, não em igrejas suntuosas ou
grandes catedrais, mas à sombra das montanhas nos vales alpinos, ou, em tempo
de perigo, em alguma fortaleza rochosa, a fim de escutar as palavras da verdade
proferidas pelos servos de Cristo. Os pastores não somente pregavam o
evangelho, mas visitavam os doentes, doutrinavam as crianças, admoestavam aos
que erravam e trabalhavam para resolver as questões e promover harmonia e amor
fraternal. Em tempos de paz eram sustentados por ofertas voluntárias do povo;
mas, como Paulo, o fabricante de tendas, cada qual aprendia um ofício ou
profissão, mediante a qual, sendo necessário, proveria o sustento próprio.
De seus pastores recebiam
os jovens instrução. Conquanto se desse atenção aos ramos dos conhecimentos
gerais, fazia-se da Escritura Sagrada o estudo principal. Os evangelhos de
Mateus e João eram confiados à memória, juntamente com muitas das epístolas.
Também se ocupavam em copiar as Escrituras. Alguns manuscritos continham a
Bíblia toda, outros apenas breves porções, a que algumas simples explicações do
texto eram acrescentadas por aqueles que eram capazes de comentar as
Escrituras. Assim se apresentavam os tesouros da verdade durante tanto tempo
ocultos pelos que procuravam exaltar-se acima de Deus.
Mediante pacientes e
incansáveis labores, por vezes nas profundas e escuras cavernas da Terra, à luz
de archotes, eram copiadas as Escrituras Sagradas, versículo por versículo,
capítulo por capítulo. Assim a obra prosseguia, resplandecendo, qual ouro puro,
a vontade revelada de Deus; e quanto mais brilhante, clara e poderosa era por
causa das provações que passavam por seu amor, apenas o poderiam compreender os
que se achavam empenhados em obra semelhante. Anjos celestiais circundavam os
fiéis obreiros.
Satanás incitara
sacerdotes e prelados a enterrarem a Palavra da verdade sob a escória do erro,
heresia e superstição; mas de modo maravilhosíssimo foi ela conservada
incontaminada através de todos os séculos de trevas. Não trazia o cunho do
homem, mas a impressão divina. Os homens se têm demonstrado incansáveis em seus
esforços para obscurecer o claro e simples sentido das Escrituras, e fazê-las
contradizerem seu próprio testemunho; porém, semelhante à arca sobre as
profundas águas encapeladas, a Palavra de Deus leva de vencida as borrascas que
a ameaçam de destruição. Assim como tem a mina ricos veios de ouro e prata
ocultos por sob a superfície, de maneira que todos os que desejam descobrir os
preciosos depósitos devem cavar, assim as Sagradas Escrituras têm tesouros de
verdade que são revelados unicamente ao ardoroso, humilde e devoto pesquisador.
Deus destinara a Bíblia a ser um compêndio para toda a humanidade, na infância,
juventude e idade madura, devendo ser estudada através de todos os tempos. Deu
Sua Palavra aos homens como revelação de Si mesmo. Cada nova verdade que se
divisa é uma nova revelação do caráter de seu Autor. O estudo das Escrituras é
o meio divinamente ordenado para levar o homem a mais íntima comunhão com seu
Criador e dar-lhe mais claro conhecimento de Sua vontade. É o meio de
comunicação entre Deus e o homem.
Conquanto os valdenses
considerassem o temor do Senhor como o princípio da sabedoria, não eram cegos
no tocante à importância do contato com o mundo, do conhecimento dos
homens e da vida ativa,
para expandir o espírito e avivar as percepções. De suas escolas nas montanhas
alguns dos jovens foram enviados a instituições de ensino nas cidades da França
ou Itália, onde havia campo mais vasto para o estudo, pensamento e observação,
do que nos Alpes nativos. Os jovens assim enviados estavam expostos à tentação,
testemunhavam o vício, defrontavam-se com os astuciosos agentes de Satanás, que
lhes queriam impor as mais subtis heresias e os mais perigosos enganos. Mas sua
educação desde a meninice fora de molde a prepará-los para tudo isto.
Nas escolas aonde iam,
não deveriam fazer confidentes a quem quer que fosse. Suas vestes eram
preparadas de maneira a ocultar seu máximo tesouro - os preciosos manuscritos
das Escrituras. A estes, fruto de meses e anos de labuta, levavam consigo e,
sempre que o podiam fazer sem despertar suspeita, cautelosamente punham uma
porção ao alcance daqueles cujo coração parecia aberto para receber a verdade.
Desde os joelhos da mãe a juventude valdense havia sido educada com este
propósito em vista; compreendiam o trabalho, e fielmente o executavam.
Ganhavam-se conversos à verdadeira fé nessas instituições de ensino, e frequentemente
se encontravam seus princípios a penetrar a escola toda; contudo os chefes
papais não podiam pelo mais minucioso inquérito descobrir a fonte da chamada
heresia corruptora.
O espírito de Cristo é
espírito missionário. O primeiro impulso do coração regenerado é levar outros
também ao Salvador. Tal foi o espírito dos cristãos valdenses. Compreendiam que
Deus exigia mais deles do que simplesmente preservar a verdade em sua pureza,
nas suas próprias igrejas; e que sobre eles repousava a solene responsabilidade
de deixarem sua luz resplandecer aos que se achavam em trevas. Pelo forte poder
da Palavra de Deus procuravam romper o cativeiro que Roma havia imposto.
Os ministros valdenses
eram educados como missionários, exigindo-se primeiramente de cada um que
tivesse a expectativa de entrar para o ministério, aquisição de experiência
como evangelista. Cada um deveria servir três anos em algum campo missionário
antes de assumir o encargo de uma igreja em seu país. Este serviço, exigindo
logo de começo renúncia e sacrifício, era introdução apropriada à vida pastoral
naqueles tempos que punham à prova a alma. Os jovens que recebiam a ordenação
para o sagrado mister, viam diante de si, não a perspectiva de riquezas e
glória terrestre, mas uma vida de trabalhos e perigo, e possivelmente o destino
de mártir. Os missionários iam de dois em dois, como Jesus enviara Seus
discípulos. Cada jovem tinha usualmente por companhia um homem de idade e
experiência, achando-se aquele sob a orientação do companheiro, que ficava
responsável por seu ensino, e a cuja instrução se esperava que seguisse. Estes
coobreiros não estavam sempre juntos, mas muitas vezes se reuniam para orar e
aconselhar-se, fortalecendo-se assim mutuamente na fé.
Tornar conhecido o
objetivo de sua missão seria assegurar a derrota; ocultavam, portanto,
cautelosamente seu verdadeiro caráter. Cada ministro possuía conhecimento de
algum ofício ou profissão e os missionários prosseguiam na obra sob a aparência
de vocação secular. Usualmente escolhiam a de mercador ou vendedor ambulante.
"Levavam sedas, jóias e outros artigos, que naquele tempo não se compravam
facilmente, a não ser em mercados distantes; e eram bem recebidos como
negociantes onde teriam sido repelidos como missionários." - Wylie. Em
todo o tempo seu coração se levantava a Deus rogando sabedoria a fim de
apresentar um tesouro mais precioso do que o ouro ou jóias. Levavam secretamente
consigo exemplares da Escritura Sagrada, no todo ou em parte; quando quer que
se apresentasse oportunidade, chamavam a atenção dos fregueses para os
manuscritos. Muitas vezes assim se despertava o interesse de ler a Palavra de
Deus, e alguma porção era de bom grado deixada com os que a desejavam receber.
A obra destes
missionários começava nas planícies e vales ao pé de suas próprias montanhas,
mas estendia-se muito além destes limites. Descalços e com vestes singelas como
eram as de seu Mestre, passavam por grande cidades e penetravam em longínquas
terras. Por toda parte espalhavam a preciosa verdade. Surgiam igrejas em seu
caminho e o sangue dos mártires testemunhava da verdade. O dia de Deus revelará
rica colheita de almas enceleiradas pelos labores destes homens fiéis. Velada e
silenciosa, a Palavra de Deus rompia caminho através da cristandade e tinha
alegre acolhida nos lares e corações.
Para os valdenses não
eram as Escrituras simplesmente o registo do trato de Deus para com os homens
no passado e a revelação das responsabilidades e deveres do presente, mas o
desvendar dos perigos e glórias do futuro. Acreditavam que o fim de todas as
coisas não estava muito distante; e, estudando a Bíblia com oração e lágrimas,
mais profundamente se impressionavam com suas preciosas declarações e com o
dever de tornar conhecidas a outros as suas verdades salvadoras. Viam o plano
da salvação claramente revelado nas páginas sagradas e encontravam conforto,
esperança e paz crendo em Jesus. Ao iluminar-lhes a luz o entendimento e ao
alegrar-lhes ela o coração, anelavam derramar seus raios sobre os que se
achavam nas trevas do erro papal.
Viam que sob a direção do
papa e sacerdotes, multidões em vão se esforçavam por obter perdão afligindo o corpo
por causa do pecado da alma. Ensinados a confiar nas boas obras para se
salvarem,
estavam sempre a olhar para si mesmos, ocupando a mente com a sua
condição pecaminosa, vendo-se expostos à ira de Deus, afligindo alma e corpo,
não achando, contudo, alívio. Almas conscienciosas eram, assim, enredadas pelas
doutrinas de Roma. Milhares abandonavam amigos e parentes, passando a vida nas
celas dos conventos. Por meio de frequentes jejuns e cruéis açoitamentos, por
vigílias à meia-noite, prostrando-se durante horas cansativas sobre as lajes
frias e húmidas de sua sombria habitação, por longas peregrinações, penitências
humilhantes e terrível tortura, milhares procuravam inutilmente obter paz de
consciência. Oprimidos por uma intuição de pecado e perseguidos pelo temor da
ira vingadora de Deus, muitos continuavam a sofrer até que a natureza exausta
se rendia e, sem um resquício de luz ou esperança, baixavam à sepultura.
Os valdenses ansiavam por partir a estas almas
famintas o pão da vida, revelar-lhes as mensagens de paz das promessas de Deus
e apontar-lhes a Cristo como a única esperança de salvação. Tinham por falsa a
doutrina de que as boas obras podem expiar a transgressão da lei de Deus. A
confiança nos méritos humanos faz perder de vista o amor infinito de Cristo.
Jesus morreu como sacrifício pelo homem porque a raça caída nada pode fazer
para se recomendar a Deus.Os méritos de um Salvador
crucificado e ressurgido são o fundamento da fé cristã. A dependência da alma
para com Cristo é tão real, e sua união com Ele deve ser tão íntima como a do
membro para com o corpo, ou da vara para com a videira.
Os ensinos dos papas e
sacerdotes haviam levado os homens a considerar o caráter de Deus, e mesmo o de
Cristo, como severo, sombrio e repelente. Representava-se o Salvador tão
destituído de simpatia para com o homem em seu estado decaído, que devia ser
invocada a mediação de sacerdotes e santos. Aqueles cuja mente fora iluminada
pela Palavra de Deus, anelavam guiar estas almas a Jesus, como seu compassivo e
amante Salvador que permanece de braços estendidos a convidar todos a irem a
Ele com seu fardo de pecados, seus cuidados e fadigas. Almejavam remover os
obstáculos que Satanás havia acumulado para que os homens não pudessem ver as
promessas, e ir diretamente a Deus, confessando os pecados e obtendo perdão e
paz.
Ardorosamente desvendava
o missionário valdense as preciosas verdades do evangelho ao espírito
inquiridor. Citava com precaução as porções cuidadosamente copiadas da Sagrada
Escritura. Era a sua máxima alegria infundir esperança à alma conscienciosa,
ferida pelo pecado, e que tão-somente podia ver um Deus de vingança, esperando
para executar justiça. Com lábios trémulos e olhos lacrimosos, muitas vezes com
os joelhos curvados, expunha a seus irmãos as preciosas promessas que revelam a
única esperança do pecador. Assim a luz da verdade penetrava muitas almas
obscurecidas, fazendo recuar a nuvem sombria até que o Sol da Justiça
resplandecesse no coração, trazendo saúde em seus raios. Dava-se amiúde o caso
de alguma porção das Escrituras ser lida várias vezes, desejando o ouvinte que
fosse repetida, como se quisesse assegurar-se de que tinha ouvido bem. Em
especial se desejava, de maneira ávida, a repetição destas palavras: "O
sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo o pecado." I João
1:7. "Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o
Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que n´Ele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna." João 3:14 e 15.
Muitos não se iludiam em
relação às pretensões de Roma. Viam quão vã é a mediação de homens ou anjos em
favor do pecador. Raiando-lhes na mente a verdadeira luz, exclamavam com
regozijo: "Cristo é meu Sacerdote; Seu sangue é meu sacrifício; Seu altar
é meu confessionário." Confiavam-se inteiramente aos méritos de Jesus,
repetindo as palavras: "Sem fé é impossível agradar-Lhe." Heb. 11:6.
"Nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser
salvos." Atos 4:12.
A certeza do amor de um
Salvador parecia, a algumas destas pobres almas agitadas pela tempestade, coisa
por demais vasta para ser abrangida. Tão grande era o alívio que sentiam, tal a
inundação de luz que lhes sobrevinha, que pareciam transportadas ao Céu. Punham
confiantemente suas mãos na de Cristo; firmavam os pés sobre a Rocha dos
séculos. Bania-se todo o temor da morte. Podiam agora ambicionar a prisão e a
fogueira se desse modo honrassem o nome de seu Redentor.
Em lugares ocultos era a
Palavra de Deus apresentada e lida, algumas vezes a uma única alma, outras, a
um pequeno grupo que anelava a luz e a verdade. Amiúde a noite toda era passada
desta maneira. Tão grande era o assombro e admiração dos ouvintes que o
mensageiro da misericórdia frequentemente se via obrigado a cessar a leitura
até que o entendimento pudesse apreender as boas novas da salvação. Era comum
proferirem-se palavras como estas: "Aceitará Deus em verdade a minha
oferta? Olhar-me-á benignamente? Perdoar-me-á Ele?" Lia-se a resposta:
"Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos
aliviarei." Mat. 11:28.
A fé se apegava à
promessa, ouvia-se a alegre resposta: "Nada mais de longas peregrinações;
nada de penosas jornadas aos relicários sagrados. Posso ir a Jesus tal como
estou, pecador e ímpio, e Ele não desprezará a oração de arrependimento.
'Perdoados te são os teus pecados.' Os meus pecados, efetivamente os meus,
podem ser perdoados!"
Enchia o coração uma onda
de sagrada alegria, e o nome de Jesus era engrandecido em louvores e ações de
graças. Estas almas felizes voltavam para casa a fim de difundir a luz, repetir
a outros, tão bem quanto podiam, a nova experiência, de que acharam o Caminho
verdadeiro e vivo. Havia um estranho e solene poder nas palavras das
Escrituras, que falava diretamente ao coração dos que se achavam anelantes pela
verdade. Era a voz de Deus e levava a convicção aos que ouviam.
O mensageiro da verdade
continuava o seu caminho; mas seu aspecto de humildade, sua sinceridade, ardor
e profundo fervor, eram assuntos de observação freqüente. Em muitos casos os
ouvintes não lhe perguntavam donde viera ou para onde ia. Ficavam tão
dominados, a princípio pela surpresa e depois pela gratidão e alegria, que não
pensavam em interrogá-lo. Quando insistiam com ele para os acompanhar a suas
casas, respondia-lhes que devia visitar as ovelhas perdidas do rebanho. Não
seria ele um anjo do Céu? Indagavam.
Em muitos casos não mais
se via o mensageiro da verdade. Seguira para outros países, ou a vida se lhe
consumia em algum calabouço desconhecido, ou talvez seus ossos estivessem
alvejando no local em que testificara da verdade. Mas as palavras que deixara
após si, não poderiam ser destruídas. Estavam a fazer sua obra no coração dos
homens; os benditos resultados só no dia do juízo se revelarão plenamente.
Os missionários valdenses
estavam invadindo o reino de Satanás, e os poderes das trevas despertaram para
maior vigilância. Todo esforço para avanço da verdade era observado pelo
príncipe do mal, e ele excitava os temores de seus agentes. Os chefes papais
viram grande perigo para a sua causa no trabalho destes humildes itinerantes.
Se fosse permitido à luz da verdade resplandecer sem impedimento, varreria as
pesadas nuvens de erro que envolviam o povo; haveria de dirigir o espírito dos
homens a Deus unicamente, talvez destruindo, afinal, a supremacia de Roma.
A própria existência
deste povo, mantendo a fé da antiga igreja, era testemunho constante da
apostasia de Roma, e portanto excitava o ódio e perseguição mais atrozes. Sua
recusa de renunciar às Escrituras era também ofensa que Roma não podia tolerar.
Decidiu-se ela a exterminá-los da Terra. Começaram então as mais terríveis
cruzadas contra o povo de Deus em seus lares montesinos. Puseram-se
inquisidores em suas pegadas, e a cena do inocente Abel tombando ante o
assassino Caim repetia-se frequentemente.
Reiteradas vezes foram
devastadas as suas férteis terras, destruídas as habitações e capelas, de
maneira que onde houvera campos florescentes e lares de um povo simples e
laborioso, restava apenas um deserto. Assim como o animal de rapina se torna
mais feroz provando sangue, a ira dos sectários do papa acendia-se com maior
intensidade com o sofrimento de suas vítimas. Muitas destas testemunhas da fé
pura foram perseguidas através das montanhas e caçadas nos vales em que se
achavam escondidas, encerradas por enormes florestas e cumes rochosos.
Nenhuma acusação se
poderia fazer contra o caráter moral da classe proscrita. Mesmo seus inimigos
declaravam serem eles um povo pacífico, sossegado e piedoso. Seu grande crime
era não quererem adorar a Deus segundo a vontade do papa.
Por tal crime, toda
humilhação, insulto e tortura que homens ou diabos podiam inventar,
amontoaram-se sobre eles.
Determinando-se Roma a
exterminar a odiada seita, uma bula foi promulgada pelo papa, condenando-os
como hereges e entregando-os ao morticínio. Não eram acusados como ociosos,
desonestos ou desordeiros; mas declarava-se que tinham uma aparência de piedade
e santidade que seduzia "as ovelhas do verdadeiro aprisco". Portanto
ordenava o papa que "aquela maligna e abominável seita de perversos",
caso se recusasse a renunciar, "fosse esmagada como serpentes
venenosas". - Wylie. Esperava o altivo potentado ter de responder por
estas palavras? Sabia que estavam registradas nos livros do Céu, para lhe serem
apresentadas no juízo? "Quando o fizestes a um destes Meus pequeninos
irmãos", disse Jesus, "a Mim o fizestes." Mat. 25:40.
Essa bula convocava a
todos os membros da igreja para se unirem à cruzada contra os hereges. Como incentivo
para se empenharem na obra cruel, "absolvia de todas as penas e castigos
eclesiásticos, gerais e particulares; desobrigava a todos os que se unissem à
cruzada, de qualquer juramento que pudessem ter feito; legitimava-lhes o
direito a qualquer propriedade que pudessem ter ilegalmente adquirido; e
prometia remissão de todos os pecados aos que matassem algum herege. Anulava
todos os contratos feitos em favor dos valdenses, ordenava que seus criados os
abandonassem, proibia a toda pessoa dar-lhes qualquer auxílio que fosse e a
todos permitia tomar posse de sua propriedade". - Wylie. Este documento
revela claramente o espírito que o ditou. É o bramido do dragão, e não a voz de
Cristo, que nele se ouve.
Os dirigentes papais não
queriam conformar seu caráter com a grande norma da lei de Deus, mas erigiram
uma norma que lhes fosse conveniente, e decidiram obrigar todos a se
conformarem com a mesma porque Roma assim o desejava. As mais horríveis
tragédias foram encenadas. Sacerdotes e papas corruptos e blasfemos estavam a
fazer a obra que Satanás lhes designava. A misericórdia não encontrava guarida
em sua natureza. O mesmo espírito que crucificou Cristo e matou os apóstolos, o
mesmo que impulsionou o sanguinário Nero contra os fiéis de seu tempo, estava
em operação a fim de exterminar da Terra os que eram amados de Deus.
As perseguições
desencadeadas durante muitos séculos sobre este povo temente a Deus, foram por
ele suportadas com uma paciência e constância que honravam seu Redentor. Apesar
das cruzadas contra eles e da desumana carnificina a que foram sujeitos,
continuavam a mandar seus missionários a espalhar a preciosa verdade. Eram
perseguidos até à morte; contudo, seu sangue regava a semente lançada, e esta
não deixou de produzir fruto. Assim os valdenses testemunharam de Deus, séculos
antes do nascimento de Lutero. Dispersos em muitos países, plantaram a semente
da Reforma que se iniciou no tempo de Wycliffe, cresceu larga e profundamente
nos dias de Lutero, e deve ser levada avante até ao final do tempo por aqueles
que também estão dispostos a sofrer todas as coisas pela "Palavra de Deus,
e pelo testemunho de Jesus Cristo". Apoc. 1:9.
Antes da Reforma, houve
por vezes pouquíssimos exemplares da Escritura Sagrada; mas Deus não consentira
que Sua Palavra fosse totalmente destruída. Suas verdades não deveriam estar
ocultas para sempre. Tão facilmente poderia Ele desacorrentar as palavras da
vida como abrir portas de prisões e desaferrolhar portais de ferro para pôr em
liberdade a Seus servos. Nos vários países da Europa homens eram movidos pelo
Espírito de Deus a buscar a verdade como a tesouros escondidos.
Providencialmente guiados às Santas Escrituras, estudavam as páginas sagradas
com interesse profundo. Estavam dispostos a aceitar a luz, a qualquer custo.
Posto que não vissem todas as coisas claramente, puderam divisar muitas
verdades havia muito sepultadas. Como mensageiros enviados pelo Céu, saíam,
rompendo as cadeias do erro e superstição e chamando aos que haviam estado
durante tanto tempo escravizados, a levantar-se e assegurar sua liberdade.
Com exceção do que se
passava entre os valdenses, a Palavra de Deus estivera durante séculos
encerrada em línguas apenas conhecidas pelos eruditos; chegara, porém, o tempo
para que as Escrituras fossem traduzidas e entregues ao povo dos vários países
em sua língua materna. Passara para o mundo a meia-noite. As horas de trevas
estavam a esvair-se, e em muitas terras apareciam indícios da aurora a
despontar.
No século XIV surgiu na
Inglaterra um homem que devia ser considerado "a estrela da manhã da
Reforma". João Wycliffe foi o arauto da Reforma, não somente para a
Inglaterra mas para toda a cristandade. O grande protesto contra Roma, que lhe
foi dado proferir, jamais deveria silenciar. Aquele protesto abriu a luta de
que deveria resultar a emancipação de indivíduos, igrejas e nações.
Wycliffe recebeu educação
liberal, e para ele o temor do Senhor era o princípio da sabedoria. No colégio
se distinguira pela fervorosa piedade bem como por seus notáveis talentos e
perfeito preparo escolar. Em sua sede de saber procurava familiarizar-se com
todo ramo de conhecimento. Foi educado na filosofia escolástica, nos cânones da
igreja e na lei civil, especialmente a de seu próprio país. Em seus trabalhos subsequentes
evidenciou-se o valor destes primeiros estudos. Um conhecimento proficiente da
filosofia especulativa de seu tempo, habilitou-o a expor os erros dela; e,
mediante o estudo das leis civis e eclesiásticas, preparou-se para entrar na
grande luta pela liberdade civil e religiosa. Não só sabia manejar as armas
tiradas da Palavra de Deus, mas também havia adquirido a disciplina intelectual
das escolas e compreendia a tática dos teólogos escolásticos. O poder de seu génio
e a extensão e proficiência de seus conhecimentos impunham o respeito de amigos
bem como de inimigos. Seus adeptos viam com satisfação que seu herói ocupava
lugar preeminente entre os espíritos dirigentes da nação; e seus inimigos eram
impedidos de lançar o desprezo à causa da Reforma, exprobrando a ignorância ou
fraqueza do que a mantinha.
Quando ainda no colégio,
Wycliffe passou a estudar as Escrituras Sagradas. Naqueles primitivos tempos em
que a Bíblia existia apenas nas línguas antigas, os eruditos estavam
habilitados a encontrar o caminho para a fonte da verdade, o qual se achava
fechado às classes incultas. Assim, já fora preparado o caminho para o trabalho
futuro de Wycliffe como Reformador.
Homens de saber haviam
estudado a Palavra de Deus e encontrado a grande verdade de Sua livre graça,
ali revelada. Em seus ensinos tinham disseminado o conhecimento desta verdade e
levado outros a volver às Sagradas Escrituras.
Quando a atenção de
Wycliffe se volveu às Escrituras, passou a pesquisá-las com a mesma
proficiência que o havia habilitado a assenhorear-se da instrução das escolas.
Até ali tinha ele sentido grande necessidade que nem seus estudos escolásticos
nem o ensino da igreja puderam satisfazer. Na Palavra de Deus encontrou o que
antes em vão procurara. Ali viu revelado o plano da salvação, e Cristo
apresentado como único advogado do homem. Entregou-se ao serviço de Cristo e
decidiu-se a proclamar as verdades que havia descoberto.
Semelhante aos
reformadores posteriores, Wycliffe não previu, ao iniciar a sua obra, até onde
ela o levaria. Não se opôs deliberadamente a Roma. A dedicação à verdade,
porém, não poderia senão levá-lo a conflito com a falsidade. Quanto mais
claramente discernia os erros do papado, mais fervorosamente apresentava os ensinos
da Escritura Sagrada. Via que Roma abandonara a Palavra de Deus pela tradição
humana; destemidamente acusava o sacerdócio de haver banido as Escrituras, e
exigia que a Bíblia fosse devolvida ao povo e de novo estabelecida sua
autoridade na igreja. Wycliffe era ensinador hábil e ardoroso, eloquente
pregador, e sua vida diária era uma demonstração das verdades que pregava. O
conhecimento das Escrituras, a força de seu raciocínio, a pureza de sua vida e
sua coragem e integridade inflexíveis conquistaram-lhe geral estima e
confiança. Muitas pessoas se tinham tornado descontentes com sua fé anterior,
ao verem a iniquidade que prevalecia na Igreja de Roma, e saudaram com
incontida alegria as verdades expostas por Wycliffe; mas os dirigentes papais
encheram-se de raiva quando perceberam que este reformador conquistava maior
influência que a deles mesmos.
Wycliffe era perspicaz
descobridor de erros e atacou destemidamente muitos dos abusos sancionados pela
autoridade de Roma. Quando agia como capelão do rei, assumiu ousada atitude
contra o pagamento do tributo que o papa pretendia do monarca inglês e mostrou
que a pretensão papal de autoridade sobre os governantes seculares era
contrária tanto à razão como à revelação. As exigências do papa tinham excitado
grande indignação e os ensinos de Wycliffe exerceram influência sobre o
espírito dos dirigentes do país. O rei e os nobres uniram-se em negar as
pretensões do pontífice à autoridade temporal, e na recusa do pagamento do
tributo. Destarte, um golpe eficaz foi desferido contra a supremacia papal na
Inglaterra.
Outro mal contra que o
reformador sustentou longa e resoluta batalha, foi a instituição das ordens dos
frades mendicantes. Estes frades enxameavam na Inglaterra, lançando uma nódoa à
grandeza e prosperidade da nação. A indústria, a educação, a moral, tudo sentia
a influência debilitante. A vida de ociosidade e mendicidade dos monges não só
era grande escoadouro dos recursos do povo, mas lançava o desdém ao trabalho
útil. A juventude se desmoralizava e corrompia. Pela influência dos frades
muitos eram induzidos a entrar para o claustro e dedicar-se à vida monástica, e
isto não só sem o consentimento dos pais, mas mesmo sem seu conhecimento e
contra as suas ordens. Um dos primitivos padres da Igreja de Roma, insistindo
sobre as exigências do monasticismo acima das obrigações do amor e dever
filial, declarou: "Ainda que teu pai se encontrasse deitado diante de tua
porta, chorando e lamentando, e a tua mãe te mostrasse o corpo que te carregou
e os seios que te nutriram, tê-los-ás de pisar a pés e ir avante diretamente a
Cristo." Por esta "monstruosa desumanidade", como mais tarde
Lutero a denominou, "que cheira mais a lobo e a tirano do que a cristão ou
homem", empedernia-se o coração dos filhos contra os pais. - Vida de
Lutero, de Barnas Sears.
Assim, os dirigentes
papais, como os fariseus de outrora, tornavam sem efeito o mandamento de Deus,
com a sua tradição. Assim se desolavam lares, e pais ficavam privados da
companhia dos filhos e filhas.
Mesmo os estudantes das
universidades eram enganados pelas falsas representações dos monges, e
induzidos a unir-se às suas ordens. Muitos mais tarde se arrependiam deste
passo, vendo que haviam prejudicado sua própria vida e causado tristeza aos
pais; mas, uma vez presos na armadilha, era-lhes impossível obter liberdade.
Muitos pais, temendo a influência dos monges, recusavam-se a enviar os filhos
às universidades. Houve assinalada redução no número de estudantes que frequentavam
os grandes centros de ensino. As escolas feneciam e prevalecia a ignorância.
O papa conferira a esses
monges a faculdade de ouvir confissões e conceder perdão. Isto se tornou fonte
de grandes males. Inclinados a aumentar seus lucros, os frades estavam tão
dispostos a conceder absolvição que criminosos de todas as espécies a eles
recorriam e, como resultado, aumentaram rapidamente os vícios mais detestáveis.
Os doentes e os pobres eram deixados a sofrer, enquanto os donativos que lhes
deveriam suavizar as necessidades, iam para os monges que com ameaças exigiam
esmolas do povo, denunciando a impiedade dos que retivessem os donativos de
suas ordens. Apesar de sua profissão de pobreza, a riqueza dos frades aumentava
constantemente e seus sumptuosos edifícios e lautas mesas tornavam mais notória
a pobreza crescente da nação. E enquanto gastavam o tempo em luxo e prazeres,
enviavam em seu lugar homens ignorantes que apenas podiam narrar histórias
maravilhosas, lendas, pilhérias para divertir o povo e torná-lo ainda mais
completamente iludido pelos monges. Contudo, os frades continuavam a manter o
domínio sobre as multidões supersticiosas, e a levá-las a crer que todo dever
religioso se resumia em reconhecer a supremacia do papa, adorar os santos e
fazer donativos aos monges, e que isto era suficiente para lhes garantir lugar
no Céu.
Homens de saber e piedade
haviam trabalhado em vão para efetuar uma reforma nessas ordens monásticas;
Wycliffe, porém, com intuição mais clara, feriu o mal pela raiz, declarando que
a própria organização era falsa e que deveria ser abolida. Despertavam-se
discussões e indagações. Atravessando os monges o país, vendendo perdões do
papa, muitos foram levados a duvidar da possibilidade de comprar perdão com
dinheiro e suscitaram a questão se não deveriam antes buscar de Deus o perdão
em vez de buscá-lo do pontífice de Roma. Não poucos se alarmavam com a
capacidade dos frades, cuja avidez parecia nunca se satisfazer. "Os monges
e sacerdotes de Roma", diziam eles, "estão-nos comendo como um
câncer. Deus nos deve livrar, ou o povo perecerá." - D'Aubigné. Para
encobrir sua avareza, pretendiam os monges mendicantes seguir o exemplo do
Salvador, declarando que Jesus e Seus discípulos haviam sido sustentados pela
caridade do povo. Esta pretensão resultou em prejuízo de sua causa, pois levou
muitos à Escritura Sagrada, a fim de saberem por si mesmos a verdade -
resultado que de todos os outros era o menos desejado de Roma. A mente dos
homens foi dirigida à Fonte da verdade, que era o objetivo de Roma ocultar.
Wycliffe começou a
escrever e publicar folhetos contra os frades, porém não tanto procurando
entrar em discussão com eles como despertando o espírito do povo aos ensinos da
Bíblia e seu Autor. Ele declarava que o poder do perdão ou excomunhão não o
possuía o papa em maior grau do que os sacerdotes comuns, e que ninguém pode ser
verdadeiramente excomungado a menos que primeiro haja trazido sobre si a
condenação de Deus. De nenhuma outra maneira mais eficaz poderia ele ter
empreendido a demolição da gigantesca estrutura de domínio espiritual e
temporal que o papa erigira, e em que alma e corpo de milhões se achavam
retidos em cativeiro.
De novo foi Wycliffe
chamado para defender os direitos da coroa inglesa contra as usurpações de
Roma; e, sendo designado embaixador real, passou dois anos na Holanda, em
conferência com os emissários do papa. Ali entrou em contato com eclesiásticos
da França, Itália e Espanha, e teve oportunidade de devassar os bastidores e
informar-se de muitos fatos que lhe teriam permanecido ocultos na Inglaterra.
Aprendeu muita coisa que o orientaria em seus trabalhos posteriores. Naqueles
representantes da corte papal lia ele o verdadeiro caráter e objetivos da
hierarquia. Voltou para a Inglaterra a fim de repetir mais abertamente e com
maior zelo seus ensinos anteriores, declarando que a cobiça, o orgulho e o
engano eram os deuses de Roma.
Num de seus folhetos
disse ele, falando do papa e seus coletores: "Retiram de nosso país os
meios de subsistência dos pobres, e muitos milhares de marcos, anualmente, do
dinheiro do rei, para sacramentos e coisas espirituais, o que é amaldiçoada
heresia de simonia, e fazem com que toda a cristandade consinta nesta heresia e
a mantenha. E, na verdade, ainda que nosso reino tivesse uma gigantesca
montanha de ouro, e nunca homem algum dali tirasse a não ser somente o coletor
deste orgulhoso e mundano sacerdote, com o tempo ela se esgotaria; pois sempre
ele tira dinheiro de nosso país e nada devolve a não ser a maldição de Deus
pela sua simonia." - História da Vida e Sofrimentos de J. Wycliffe, do
Rev. João Lewis.
Logo depois de sua volta
à Inglaterra, Wycliffe recebeu do rei nomeação para a reitoria de Lutterworth.
Isto correspondia a uma prova de que o monarca ao menos não se desagradara de
sua maneira franca no falar. A influência de Wycliffe foi sentida no moldar a
ação da corte, bem como a crença da nação.
Os trovões papais logo se
desencadearam contra ele. Três bulas foram expedidas para a Inglaterra: para a
universidade, para o rei e para os prelados, ordenando todas as medidas
imediatas e decisivas para fazer silenciar o ensinador de heresias. Antes da
chegada das bulas, porém, os bispos, em seu zelo, intimaram Wycliffe a
comparecer perante eles para julgamento. Entretanto, dois dos mais poderosos
príncipes do reino o acompanharam ao tribunal; e o povo, rodeando o edifício e
invadindo-o, intimidou de tal maneira os juízes que o processo foi
temporariamente suspenso, sendo-lhe permitido ir-se em paz. Um pouco mais tarde
faleceu Eduardo III, a quem em sua idade avançada os prelados estavam
procurando influenciar contra o reformador, e o anterior protetor de Wycliffe
tornou-se regente do reino.
Mas a chegada das bulas
papais trazia para toda a Inglaterra a ordem peremptória de prisão e
encarceramento do herege. Estas medidas indicavam de maneira direta a fogueira.
Parecia certo que Wycliffe logo deveria cair vítima da vingança de Roma. Mas
Aquele que declarou outrora a alguém: "Não temas, ... Eu sou teu
escudo" (Gén. 15:1), de novo estendeu a mão para proteger Seu servo. A
morte veio, não para o reformador, mas para o pontífice que lhe decretara
destruição. Gregório XI morreu, e dispersaram-se os eclesiásticos que se haviam
reunido para o processo de Wycliffe.
A providência de Deus
encaminhou ainda mais os acontecimentos para dar oportunidade ao
desenvolvimento da Reforma. A morte de Gregório foi seguida da eleição de dois
papas rivais. Dois poderes em conflito, cada um se dizendo infalível, exigiam
agora obediência. Cada qual apelava para os fiéis a fim de o ajudarem a fazer
guerra contra o outro, encarecendo suas exigências com terríveis anátemas
contra os adversários e promessas de recompensas no Céu aos que o apoiavam.
Esta ocorrência enfraqueceu grandemente o poderio do papado. As facções rivais
fizeram tudo que podiam para atacar uma a outra, e durante algum tempo Wycliffe
teve repouso. Anátemas e recriminações voavam de um papa a outro, e
derramavam-se torrentes de sangue para sustentar suas pretensões em conflito.
Crimes e escândalos inundavam a igreja. Nesse ínterim, o reformador, no
silencioso retiro de sua paróquia de Lutterworth, estava trabalhando
diligentemente para, dos papas contendores, dirigir os homens a Jesus, o
Príncipe da paz.
O cisma, com toda a
contenda e corrupção que produziu, preparou o caminho para a Reforma,
habilitando o povo a ver o que o papado realmente era. Num folheto que publicou
- Sobre o Cisma dos Papas - Wycliffe apelou para o povo a fim de que
considerasse se esses dois sacerdotes estavam a falar a verdade ao condenarem
um ao outro como o anticristo. "Deus", disse ele, "não mais quis
consentir que o demónio reinasse em um único sacerdote tal, mas... fez divisão
entre dois, de modo que os homens, em nome de Cristo, possam mais facilmente
vencê-los a ambos." - Vida e Opiniões de João Wycliffe, de Vaughan.
Wycliffe, a exemplo de
seu Mestre, pregou o evangelho aos pobres. Não contente com espalhar a luz nos
lares humildes em sua própria paróquia de Lutterworth, concluiu que ela deveria
ser levada a todas as partes da Inglaterra. Para realizar isto organizou um
corpo de pregadores, homens simples e dedicados, que amavam a verdade e nada
desejavam tanto como o propagá-la. Estes homens iam por toda parte, ensinando
nas praças, nas ruas das grandes cidades e nos atalhos do interior. Procuravam
os idosos, os doentes e os pobres, e desvendavam-lhes as alegres novas da graça
de Deus.
Como professor de
teologia em Oxford, Wycliffe pregou a Palavra de Deus nos salões da
universidade. Tão fielmente apresentava ele a verdade aos estudantes sob sua
instrução, que recebeu o título de "Doutor do Evangelho".
Mas a maior obra da vida
de Wycliffe deveria ser a tradução das Escrituras para a língua inglesa. Num
livro - Sobre a Verdade e Sentido das Escrituras - exprimiu a intenção de
traduzir a Bíblia, de maneira que todos na Inglaterra pudessem ler, na língua
materna, as maravilhosas obras de Deus.
Subitamente, porém,
interromperam-se as suas atividades. Posto que não tivesse ainda sessenta anos
de idade, o trabalho incessante, o estudo e os assaltos dos inimigos haviam
posto à prova suas forças, tornando-o prematuramente velho. Foi atacado de
perigosa enfermidade. A notícia disto proporcionou grande alegria aos frades.
Pensavam então que se arrependeria amargamente do mal que tinha feito à igreja
e precipitaram-se ao seu quarto para ouvir-lhe a confissão. Representantes das
quatro ordens religiosas, com quatro oficiais civis, reuniram-se em redor do
suposto moribundo. "Tendes a morte em vossos lábios", diziam;
"comovei-vos com as vossas faltas, e retratai em nossa presença tudo que
dissestes para ofensa nossa." O reformador ouviu em silêncio; mandou então
seu assistente levantá-lo no leito e, olhando fixamente para eles enquanto
permaneciam esperando a retratação, naquela voz firme e forte que tantas vezes
os havia feito tremer, disse: "Não hei de morrer, mas viver, e novamente
denunciar as más ações dos frades." - D'Aubigné. Espantados e confundidos,
saíram os monges apressadamente do quarto.
Cumpriram-se as palavras
de Wycliffe. Viveu a fim de colocar nas mãos de seus compatriotas a mais
poderosa de todas as armas contra Roma, isto é, dar-lhes a Escritura Sagrada, o
meio indicado pelo Céu para libertar, esclarecer e evangelizar o povo. Muitos e
grandes obstáculos havia a vencer na realização dessa obra. Wycliffe achava-se
sobrecarregado de enfermidades; sabia que apenas poucos anos lhe restavam para
o trabalho; via a oposição que teria de enfrentar; mas, animado pelas promessas
da Palavra de Deus, foi avante sem intimidar-se de coisa alguma. Quando em
pleno vigor de suas capacidades intelectuais, rico em experiências, foi ele
preservado e preparado por especial providência de Deus para esse trabalho - o
maior por ele realizado. Enquanto a cristandade se envolvia em tumultos, o
reformador em sua reitoria de Lutterworth, alheio à tempestade que fora esbravejava,
dedicava-se à tarefa que escolhera.
Concluiu-se, por fim, o
trabalho: a primeira tradução inglesa que já se fizera da Escritura Sagrada. A
Palavra de Deus estava aberta para a Inglaterra. O reformador não temia agora
prisão ou fogueira. Colocara nas mãos do povo inglês uma luz que jamais se
extinguiria. Dando a Bíblia aos seus compatriotas, fizera mais no sentido de
quebrar os grilhões da ignorância e do vício, mais para libertar e enobrecer
seu país, do que já se conseguira pelas mais brilhantes vitórias nos campos de
batalha.
Sendo ainda desconhecida
a arte de imprimir, era unicamente por trabalho moroso e fatigante que se
podiam multiplicar os exemplares da Escritura Sagrada. Tão grande era o
interesse por se obter o Livro, que muitos voluntariamente se empenharam na
obra de o transcrever; mas era com dificuldade que os copistas podiam atender
aos pedidos. Alguns dos mais ricos compradores desejavam a Bíblia toda. Outros
compravam apenas parte. Em muitos casos várias famílias se uniam para comprar
um exemplar. Assim, a Bíblia de Wycliffe logo teve acesso aos lares do povo.
O apelo para a razão
despertou os homens de sua submissão passiva aos dogmas papais. Wycliffe
ensinava agora doutrinas distintivas do protestantismo: salvação pela fé em
Cristo, e a infalibilidade das Escrituras unicamente. Os pregadores que enviara
disseminaram a Bíblia, juntamente com os escritos do reformador, e com êxito
tal que a nova fé foi aceita por quase metade do povo da Inglaterra.
O aparecimento das
Escrituras produziu estupefação às autoridades da igreja. Tinham agora de
enfrentar um fator mais poderoso do que Wycliffe, fator contra o qual suas
armas pouco valeriam. Não havia nessa ocasião na Inglaterra lei alguma
proibindo a Bíblia, pois nunca antes fora ela publicada na língua do povo.
Semelhantes leis foram depois feitas e rigorosamente executadas. Entretanto,
apesar dos esforços dos padres, houve durante algum tempo oportunidade para a
circulação da Palavra de Deus.
Novamente os chefes
papais conspiraram para fazer silenciar a voz do reformador. Perante três
tribunais foi ele sucessivamente chamado a juízo, mas sem proveito.
Primeiramente um sínodo de bispos declarou heréticos os seus escritos e,
ganhando o jovem rei Ricardo II para o seu lado, obtiveram um decreto real
sentenciando à prisão todos os que professassem as doutrinas condenadas.
Wycliffe apelou do sínodo
para o Parlamento; destemidamente acusou a hierarquia perante o conselho
nacional e pediu uma reforma dos enormes abusos sancionados pela igreja. Com
poder convincente, descreveu as usurpações e corrupções da sé papal. Seus
inimigos ficaram confusos. Os que eram amigos de Wycliffe e o apoiavam, tinham
sido obrigados
a ceder, e houvera a
confiante expectativa de que o próprio reformador, em sua avançada idade, só e
sem amigos, curvar-se-ia ante a autoridade combinada da coroa e da tiara. Mas,
em vez disso, os adeptos de Roma viram-se derrotados. O Parlamento, despertado
pelos estimuladores apelos de Wycliffe, repeliu o edito perseguidor e o
reformador foi novamente posto em liberdade.
Pela terceira vez foi ele
chamado a julgamento, e agora perante o mais elevado tribunal eclesiástico do
reino. Ali não se mostraria favor algum para com a heresia. Ali, finalmente,
Roma triunfaria e a obra do reformador seria detida. Assim pensavam os
romanistas. Se tão-somente cumprissem seu propósito, Wycliffe seria obrigado a
renunciar suas doutrinas, ou sairia da corte diretamente para as chamas.
Wycliffe, porém, não se
retratou; não usou de dissimulação. Destemidamente sustentou seus ensinos e
repeliu as acusações de seus perseguidores. Perdendo de vista a si próprio, sua
posição e o momento, citou os ouvintes perante o tribunal divino, e pesou seus
sofismas e enganos na balança da verdade eterna. Sentiu-se o poder do Espírito
Santo na sala do concílio. Os ouvintes ficaram como que fascinados. Pareciam
não ter forças para deixar o local. Como setas da aljava do Senhor, as palavras
do reformador penetravam-lhes a alma. A acusação da heresia que contra ele haviam
formulado, com poder convincente reverteu contra eles mesmos. Por que,
perguntava ele, ousavam espalhar seus erros? Por amor do lucro, para da graça
de Deus fazerem mercadoria?
"Com quem",
disse finalmente, "julgais estar a contender? com um ancião às bordas da
sepultura? Não! com a Verdade - Verdade que é mais forte do que vós, e vos
vencerá." - Wylie. Assim dizendo, retirou-se da assembleia e nenhum de
seus adversários tentou impedi-lo.
A obra de Wycliffe estava
quase terminada; a bandeira da verdade que durante tanto tempo empunhara, logo
lhe deveria cair da mão; mas, uma vez mais, deveria ele dar testemunho do evangelho.
A verdade devia ser proclamada do próprio reduto do reino do erro. Wycliffe foi
chamado a julgamento perante o tribunal papal em Roma, o qual tantas vezes
derramara o sangue dos santos. Não ignorava o perigo que o ameaçava; contudo,
teria atendido à chamada se um ataque de paralisia lhe não houvesse tornado
impossível efetuar a viagem. Mas, se bem que sua voz não devesse ser ouvida em
Roma, poderia falar por carta, e isto se decidiu a fazer. De sua reitoria o
reformador escreveu ao papa uma carta que, conquanto respeitosa nas expressões
e cristã no espírito, era incisiva censura à pompa e orgulho da sé papal.
"Em verdade me regozijo",
disse, "por manifestar e declarar a todo homem a fé que mantenho, e
especialmente ao bispo de Roma, o qual, como suponho ser íntegro e verdadeiro,
de mui boa vontade confirmará minha dita fé, ou, se é ela errônea,
corrigi-la-á.
"Em primeiro lugar,
creio que o evangelho de Cristo é o corpo todo da lei de Deus. ... Declaro e
sustento que o bispo de Roma, desde que se considera o vigário de Cristo aqui
na Terra, está obrigado, mais do que todos os outros homens, à lei do
evangelho. Pois a grandeza entre os discípulos de Cristo não consistia na
dignidade e honras mundanas, mas em seguir rigorosamente, e de perto, a Cristo
em Sua vida e maneiras. ... Jesus, durante o tempo de Sua peregrinação na
Terra, foi homem paupérrimo, desdenhando e lançando de Si todo o domínio e
honra mundanos. ...
"Nenhum homem fiel
deveria seguir quer ao próprio papa, quer a qualquer dos santos, a não ser nos
pontos em que seguirem ao Senhor Jesus Cristo; pois Pedro e os filhos de
Zebedeu, desejando honras mundanas, contrárias ao seguimento dos passos de
Cristo, erraram, e portanto nestes erros não devem ser seguidos. ...
"O papa deve deixar
ao poder secular todo o domínio e governo temporal, e neste sentido exortar e
persuadir eficazmente todo o clero; pois assim fez Cristo, e especialmente por
Seus apóstolos. Por conseguinte, se errei em qualquer destes pontos, submeter-me-ei
muito humildemente à correção, mesmo pela morte, se assim for necessário; e se
eu pudesse agir segundo minha vontade ou desejo, certamente me apresentaria em
pessoa perante o bispo de Roma; mas o Senhor determinou o contrário, e
ensinou-me a obedecer antes a Deus do que aos homens."
Finalizando, disse:
"Oremos a nosso Deus para que Ele de tal maneira influencie nosso papa
Urbano VI, conforme já começou a fazer, que juntamente com o clero possa seguir
ao Senhor Jesus Cristo na vida e nos costumes, e com eficácia ensinar o povo, e
que eles de igual maneira, fielmente os sigam nisso." - Atos e Monumentos,
de Foxe.
Assim Wycliffe apresentou
ao papa e aos cardeais a mansidão e humildade de Cristo, mostrando não somente
a eles mesmos, mas a toda a cristandade, o contraste entre eles e o Mestre, a
quem professavam representar.
Wycliffe esperava
plenamente que sua vida seria o preço de sua fidelidade. O rei, o papa e os
bispos estavam unidos para levá-lo a ruína, e parecia certo que, quando muito,
em poucos meses o levariam à fogueira. Mas sua coragem não se abalou. "Por
que falais em procurar longe a coroa do martírio?" dizia. "Pregai o
evangelho de Cristo aos altivos prelados e o martírio não vos faltará. Quê!
viveria eu e estaria silencioso? ... Nunca! Venha o golpe, eu o estou
aguardando." - D'Aubigné.
Mas Deus, em Sua
providência, ainda escudou a Seu servo. O homem que durante toda a vida
permanecera ousadamente na defesa da verdade, diariamente em perigo de vida,
não deveria cair vítima do ódio de seus adversários. Wycliffe nunca procurara
escudar-se a si mesmo, mas o Senhor lhe fora o protetor; e agora, quando seus
inimigos julgavam segura a presa, a mão de Deus o removeu para além de seu
alcance. Em sua igreja, em Lutterworth, na ocasião em que ia ministrar a
comunhão, caiu atacado de paralisia, e em pouco tempo rendeu a vida.
Deus designara a Wycliffe
a sua obra. Pusera-lhe na boca a Palavra da verdade e dispusera uma guarda a
seu redor para que esta Palavra pudesse ir ao povo. A vida fora-lhe protegida e
seus trabalhos se prolongaram, até ser lançado o fundamento para a grande obra
da Reforma.
Wycliffe saíra das trevas
da Idade Média. Ninguém havia que tivesse vivido antes dele, por meio de cuja
obra pudesse modelar seu sistema de reforma. Suscitado como João Batista para
cumprir uma missão especial, foi ele o arauto de uma nova era. Contudo, no
sistema de verdades que apresentava, havia uma unidade e perfeição que os
reformadores que o seguiram não excederam e que alguns não atingiram, mesmo cem
anos mais tarde. Tão amplo e profundo foi posto o fundamento, tão firme e
verdadeiro o arcabouço, que não foi necessário serem reconstruídos pelos que depois
dele vieram.
O grande movimento
inaugurado por Wycliffe, o qual deveria libertar a consciência e o intelecto e
deixar livres as nações, durante tanto tempo jungidas ao carro triunfal de
Roma, teve sua fonte na Escritura Sagrada. Ali se encontrava a origem da
corrente de bem-aventurança, que, como a água da vida, tem manado durante
gerações desde o século XIV. Wycliffe aceitava as Sagradas Escrituras com
implícita fé, como a inspirada revelação da vontade de Deus, como suficiente
regra de fé e prática. Fora educado de modo a considerar a Igreja de Roma como
autoridade divina, infalível, e aceitar com indiscutível reverência os ensinos
e costumes estabelecidos havia um milénio; mas de tudo isto se desviou para
ouvir a santa Palavra de Deus. Esta era a autoridade que ele insistia com o
povo para que reconhecesse. Em vez da igreja falando pelo papa, declarou ser a
única verdadeira autoridade a voz de Deus falando por Sua Palavra. E não
somente ensinava que a Bíblia é a perfeita revelação da vontade de Deus, mas
que o Espírito Santo é o seu único intérprete, e que todo homem, pelo estudo de
seus ensinos, deve aprender por si próprio o dever. Desta maneira fazia volver
o espírito, do papa e da igreja de Roma, para a Palavra de Deus.
Wycliffe foi um dos maiores
reformadores. Na amplidão de seu intelecto, clareza de pensamentos, firmeza em
manter a verdade e ousadia para defendê-la, por poucos dos que após ele vieram
foi igualado. Pureza de vida, incansável diligência no estudo e trabalho,
incorruptível integridade, amor e fidelidade cristã no ministério
caracterizaram o primeiro dos reformadores. E isto apesar das trevas
intelectuais e corrupção moral da época de que ele emergiu.
O caráter de Wycliffe é
testemunho do poder educador e transformador das Sagradas Escrituras. Foram
estas que dele fizeram o que foi. O esforço para aprender as grandes verdades
da revelação, comunica frescor e vigor a todas as faculdades. Expande a mente,
aguça a percepção, amadurece o juízo. O estudo da Bíblia enobrece a todo pensamento,
sentimento e aspiração, como nenhum outro estudo o pode fazer. Dá estabilidade
de propósitos, paciência, coragem e fortaleza; aperfeiçoa o caráter e santifica
a alma. O esquadrinhar fervoroso e reverente das Escrituras, pondo o espírito
do estudante em contato direto com a mente infinita, daria ao mundo homens de
intelecto mais forte e mais ativo, bem como de princípios mais nobres, do que
os que já existiram como resultado do mais hábil ensino que proporciona a
filosofia humana. "A exposição das Tuas palavras dá luz", diz o
salmista; "dá entendimento aos símplices." Sal. 119:130.
As doutrinas ensinadas
por Wycliffe continuaram durante algum tempo a espalhar-se; seus seguidores,
conhecidos como wyclifitas e lolardos, não somente encheram a Inglaterra, mas
espalharam-se em outros países, levando o conhecimento do evangelho. Agora que
seu guia fora tomado dentre os vivos, os pregadores trabalhavam com zelo maior
do que antes, e multidões se congregavam para ouvi-los. Alguns da nobreza e
mesmo a esposa do rei se encontravam entre os conversos. Em muitos lugares
houve assinalada reforma nos costumes do povo, e os símbolos do catolicismo
foram removidos das igrejas. Logo, porém, a impiedosa tempestade da perseguição
irrompeu sobre os que haviam ousado aceitar a Escritura Sagrada como guia. Os
monarcas ingleses, ávidos de aumentar seu poder mediante o apoio de Roma, não
hesitaram em sacrificar os reformadores. Pela primeira vez na história da
Inglaterra a fogueira foi decretada contra os discípulos do evangelho.
Martírios sucederam a martírios. Os defensores da verdade, proscritos e
torturados, podiam tão-somente elevar seus clamores ao ouvido do Senhor dos
exércitos. Perseguidos como inimigos da igreja e traidores do reino,
continuaram a pregar em lugares secretos, encontrando abrigo o melhor que
podiam nos humildes lares dos pobres, e muitas vezes refugiando-se mesmo em
brenhas e cavernas.
Apesar da fúria da
perseguição, durante séculos continuou a ser proferido um protesto calmo,
devoto, fervoroso, paciente, contra as dominantes corrupções da fé religiosa.
Os crentes daqueles primitivos tempos tinham apenas conhecimento parcial da
verdade, mas haviam aprendido a amar e obedecer à Palavra de Deus, e
pacientemente sofriam por sua causa. Como os discípulos dos dias apostólicos,
muitos sacrificavam suas posses deste mundo pela causa de Cristo. Aqueles a
quem era permitido permanecer em casa, abrigavam alegremente os irmãos banidos;
e, quando eles também eram expulsos, animosamente aceitavam a sorte dos proscritos.
Milhares, é verdade, aterrorizados pela fúria dos perseguidores, compravam a
liberdade com sacrifício da fé, e saíam das prisões vestidos com a roupa dos
penitentes, a fim de publicar sua renúncia. Mas não foi pequeno o número - e
entre estes havia homens de nascimento nobre bem como humildes e obscuros - dos
que deram destemido testemunho da verdade nos cubículos dos cárceres, nas
"Torres dos Lolardos", e em meio de tortura e chamas, regozijando-se
de que tivessem sido considerados dignos de conhecer a "comunicação de
Suas aflições".
Os romanistas não haviam
conseguido executar sua vontade em relação a Wycliffe durante a vida deste, e
seu ódio não se satisfez enquanto o corpo do reformador repousasse em sossego
na sepultura. Por decreto do concílio de Constança, mais de quarenta anos
depois de sua morte, seus ossos foram exumados e publicamente queimados, e as
cinzas lançadas em um riacho vizinho.
"Esse riacho",
diz antigo escritor, "levou suas cinzas para o Avon, o Avon para o Severn,
o Severn para os pequenos mares, e estes para o grande oceano. E assim as
cinzas de Wycliffe são o emblema de sua doutrina, que hoje está espalhada pelo
mundo inteiro." - História Eclesiástica da Bretanha, de T. Fuller. Pouco
imaginaram os inimigos a significação de seu ato perverso.
Foi mediante os escritos
de Wycliffe que João Huss, da Boémia, foi levado a renunciar a muitos erros do
catolicismo e entrar na obra da Reforma. E assim é que nesses dois países tão
grandemente separados, foi lançada a semente da verdade. Da Boémia a obra
estendeu-se para outras terras. O espírito dos homens foi dirigido para a
Palavra de Deus, havia tanto esquecida. A mão divina estava a preparar o
caminho para a Grande Reforma.