12/09/2010

O SANTO OFÍCIO: CRISTIANISMO OU BARBARIDADE?

O renascimento urbano e o nascimento intelectual está, como é sabido, ligado ao século XII. As classes sociais continuavam assim repartidas: 1- Os nobres – a que protege e usufrui; 2- Os clérigos – a que reza e continua a usufruir; 3- Os servos – a que trabalha e que não usufrui! Tudo estava compartimentado em função desta rígida divisão social.
Isto quer dizer que o povo continuava tão iletrado como antes! Era necessário dar corpo e voz a esta fórmula: “O exílio do homem é a ignorância; a sua pátria, a ciência”.
A transição do “saber” das abadias, para as cidades, dá-se a partir exactamente deste mesmo século. Assim, “em termos culturais, os centros ordenadores das representações mentais deixam de pertencer predominantemente ao clero, para se transladarem para os centros de decisão política e económica”. Será, como veremos mais abaixo, através da leitura e de um cuidado ensino das Escrituras, nas Universidades, que tudo irá acontecer! O conhecimento da Palavra de Deus será, por esta razão, extensivo às camadas mais simples – ao Povo!
Entre 1300 e 1450, tal como afirma Leopold Genicot “estende-se a sombra sobre a Idade Média”. Tempo de conflito, de contradição! Os séculos XIV e XV serão o preciso momento da “charneira” entre a sociedade feudal e o mundo moderno com tudo o quanto lhe é inerente; muitos autores se enquadram dentro desta maneira de pensar. Numa palavra: este século XIV será o período das grandes convulsões e da ruptura.
A crise do século XIV também acabou por se reflectir no campo espiritual. Ao nível das instituições religiosas, o que nos interessa focar, sucedeu o que se chamou de - “rasgões” - no imponente edifício da teocracia papal. A Igreja e o papado, minados pela crise económica, política e militar, conhecem um final de Idade Média, verdadeiramente crítico, devido: 1- À luta da realeza contra a jurisdição eclesiástica; 2- A crise de costumes do clero; 3- O surto de formação de Igrejas nacionais; 4- A heresia; enfim, tudo isto é, afinal, reflectido no Exílio de Avinhão e no Grande Cisma.
Tudo se passa como se a Igreja, já sem o prestígio e o dinamismo necessários para se impor com firmeza, fosse perdendo progressivamente a sua autoridade, mesmo até, onde sempre tinha primado, no plano intelectual!

Os Papas de Avinhão
O primeiro indício destas crises de âmbito mais alargado e, em particular, no seio da Igreja, foi a decisão do Papa Clemente V (1305-1314) de abandonar Roma para se instalar em Avinhão, devido aos constantes tumultos que agitavam Roma.
Tratava-se, segundo pensava, de uma instalação provisória. “Não pertencia Avinhão à Santa Sé? Não estava situada no condado da Provença, portanto, fora da jurisdição francesa”. Nada tinha a recear do rei francês Filipe, o Belo. “Assim se inicia o chamado «cativeiro de Babilónia» com os papas a residir em Avinhão durante 70 anos”.
Ao longo deste tempo se sucederam os diferentes pontífices; entre estes, alguns tiveram certas particularidades que realçaremos, a saber: Bento XII (1334-1342) “foi o primeiro Papa a usar a mitra de tríplice coroa, símbolo do tríplice poder ou dignidade pontifícia: real, imperial e sacerdotal” (sublinhado nosso). Com todos estes títulos, como identificar a dita “continuidade” da Igreja primitiva com tais prerrogativas de ambição de Poder? Pobre Simão Barjonas, caso viesse a saber de tais supostos sucessores!
A este sucede-lhe Clemente VI (1342-1352). Eis aqui, um homem que fazia jus ao seu cargo, à sua dignidade pontifícia. Eis o que este disse acerca de viver sob este mesmo fausto e pompa: “Os meus antecessores não sabiam viver como príncipes”. Quando consultamos os escritos daqueles ligados a esta confissão religiosa, mesmo assim, estes limitam-se a dizer: “Clemente VI não sobressaía pela piedade sacerdotal, dando-se em demasia ao luxo e ostentação de senhor temporal e protegendo excessivamente os parentes e amigos”!
Passaremos a dar a conhecer o porquê de tal afirmação! Vejamos: Como deverá proceder alguém que, a exemplo do seu antecessor se arroga no direito de usar uma tríplice coroa, símbolo do poder: real, imperial e sacerdotal? Deverá, como qualquer um seu igual em dignidade, viver e proceder em conformidade com os seus títulos? Foi exactamente isto, e nada mais, que o pontífice fez, viver como pensava que seria inerente ao seu grande cargo de Sumo Pontífice!
Tal era a degradação que, Santa Brígida da Suécia e uma outra, Santa Catarina de Sena, lhe escrevem, mas sem qualquer resultado prático. Sob este pontificado acontecem dois graves acontecimentos: 1- O início da Guerra dos 100 anos; 2- A Peste Negra, em 1348.
As repercussões deste último acontecimento foram tais que “por toda a Europa correu o boato de que a peste era um castigo de Deus contra o exílio dos papas em Avinhão, o «cativeiro de Babilónia»”.
Com Gregório XI (1370-1378) chegamos ao último Papa em Avinhão. Este deixa Avinhão “no dia 13 de Setembro de 1376, para chegar a Roma no dia 17 de Janeiro de 1377. Morre a 27 de Março de 1378, deixando a Igreja numa conjuntura difícil”. Eis a situação, em brevíssimas palavras, destes ditos sucessores do simples e humilde Simão Barjonas!

1- O Grande Cisma e Portugal
Devido à morte deste último pontífice, curiosamente, dois papas foram eleitos: Um, por Roma, tomando o nome de Urbano VI; Outro, por França, Clemente VII. As acusações mútuas multiplicam-se. Os apoiantes de Clemente VII, vociferando contra Urbano VI, convidavam-no a abdicar, apelidando-o de: “Anticristo, demónio, apóstata, tirano”. Este conflito que dividiu a Igreja desde 1378 até 1417, ficou conhecido pelo nome de Cisma do Ocidente.
A cristandade, em geral, encontrava-se dividida. Entre os crentes subsistia a grande questão: a quem obedecer espiritualmente? A Roma ou a Avinhão? Uns países optavam pelo Papa residente em Roma; outros, pelo de Avinhão! É neste contexto dúbio, e de certa forma conturbado, que todos os interesses políticos e religiosos se movem.
Uma carta enviada de Roma datada de 8 de Maio de 1378, enviada ao rei D. Fernando (expedida a todos os monarcas cristãos, e assinada por todos os cardeais eleitores) a comunicar a eleição de Urbano VI, com o seguinte teor: “(…). Por esta razão, nos pareceu informar-vos do que nestes dias se obrou na Santa Igreja Romana, para que não deis crédito a outras coisas, se acaso vo-las escreverem e disserem; e também para que a vossa consciência, informada por esta nossa atestação, sossegue e descanse sabendo a verdade (…).
Assim, o nosso monarca, “ (…) em modificação constante de alianças, seguiu primeiro Urbano VI (1378); depois, com hesitações, Clemente VII (1378-81); novamente Urbano VI (1381-1382); e uma segunda vez Clemente VII (1382-1383) O Mestre de Avis, em finais de 1383, tornou a preferir Urbano VI, mantendo-se a obediência a Roma a partir de então”.
Portanto, uma vez mais, o que norteava a adesão ao papado e, neste caso, a um deles, não eram, de modo algum, as convicções religiosas, mas as conveniências políticas, infelizmente!

2- Os Hereges
O papado torna-se o joguete da política europeia; como sempre, vivem para servir interesses inteiramente estranhos à função para que, aparentemente, o tinha sido suscitado – o espiritual!
Este clima irá provocar algumas reacções no seio da cristandade. Em primeiro lugar, dá razões para um novo impulso a todos aqueles que queriam libertar a Igreja da hierarquia corrompida que a desfigurava. Tendencialmente estavam mais inclinados a abandonar os sacramentos e a se aproximarem da Bíblia, a qual consideravam infalível. Esta posição era, para a Igreja, inadmissível porque estes afastavam-se da Tradição eclesiástica e, consequentemente, da Igreja visível, a qual pretendia ser a depositária desta tradição; ao mesmo tempo, afirmava ser a legítima intermediária entre a Bíblia e os fiéis. Homens, bem colocados, encabeçaram e representaram este aspecto da inquietação religiosa: Wyclef, João Huss e Martinho Lutero, entre outros.
O primeiro era um pensador original; o segundo, uma força eficaz; o terceiro, a sua continuação! Assim “o recurso à Sagrada Escritura é para Wyclif e para Huss a alternativa à Igreja num período de crise. Wyclif é um técnico superior do saber escolástico. (…). Contra a alternativa Wyclifista do recurso à Escritura, a Igreja é protegida pela alta tecnicidade do saber escolástico, pela impossibilidade prática de recorrer à Sagrada Escritura”.
E como poderia ser diferente?! Como é que esta confissão religiosa poderia suster os seus ensinos pelas Escrituras? Na impossibilidade de o fazer, como sempre, recorre ao argumento de se dizer mais velha! Ou então, apelando à Tradição, de cariz meramente humano! Assim, o Movimento Hussita tornou-se rapidamente a grande questão do dia, e que se alastrou para além das fronteiras da Boémia. Para encabeçar este movimento de descontentamento, aparece em cena – João Huss (1369-1415). Querendo um cristianismo mais puro, este Movimento provocará uma reacção na Igreja, visto que irá fazer despertar a necessidade de agir, para desta forma evitar que a Igreja seja universalmente rejeitada.
Vivia-se um clima de manifesta instabilidade política, social e religiosa. Para debelar esta situação, de ataque à Igreja, esta convoca grande Concílio. O mais importante da História, antes do de Trento e, ao mesmo tempo, o mais trágico de todos! Nunca a Igreja se tinha afundado tanto! Este abismo de escândalos chamava-se, como já o referimos: O Grande Cisma, devido à permanência da Cúria Romana em Avinhão.
Convoca-se o Concílio de Constança (1414-1418) onde se tratou, definitivamente, da situação interna e externa da Igreja; nomeadamente, de algumas vozes destabilizadoras, muito perigosas para o gosto desta confissão religiosa. Concorrência? Nunca! Afinal, quem era este insignificante docente: – João Huss!
Decretos foram surgindo e, para que nos apercebamos do clima vivido, transcreveremos alguns passos: “Todo aquele que, obstinadamente se recusar, ainda que seja o próprio papa, a submeter-se aos decretos, aos estatutos e às ordenações do Santo Concílio, ou de todos os outros Concílios Gerais, canonicamente reunidos, será submetido a penitência e receberá uma punição conveniente e, quando for preciso, recorrer-se-á até a outros meios fora do direito canónico”. Não será difícil adivinhar que tais medidas visavam silenciar toda e qualquer voz discordante, inclusivé, a de João Huss!
Que nos seja permitido aqui abrir um parêntesis: este pequeno excerto do decreto do Concílio de Constança, recorda-nos o que acima já abordámos no que respeita à última Carta Apostólica Ad Tuendam Fidem de João Paulo II, quando este escreve a dado passo: “(…) quem advogar uma doutrina definitivamente proposta ou condenada por errónea pelo Romano Pontífice ou pelo Colégio dos Bispos no exercício do magistério autêntico e, legitimamente admoestado, não se retractar seja punido com uma pena adequada”! Cinco séculos depois, o que é que mudou? Respondemos: NADA! E porquê? Só mudam as pessoas, as quais não passam de meros nomes efémeros!
A exemplo do passado, se a questão a tratar num determinado momento da nossa vivência, colocar em causa qualquer ponto doutrinário desta confissão religiosa, as sevícias do passado ressurgirão tais quais foram, para que esta se imponha, uma vez mais - não pelas Escrituras - porque nelas não se fundamenta, mas como sempre o fez, através da força e da repressão!
Uma vez mais, tal como na Idade Média, o tom das palavras da Carta Apostólica de João Paulo II o deixa adivinhar e, contrariamente ao que escreveu o nosso autor, far-se-á, uma vez mais tábua rasa de “(…) democracia, liberdade religiosa e direitos fundamentais da pessoa (…)”. Somos falsos profetas? Cremos que não! Sabe, prezado leitor, a História, dizem, tem tendência a ser “cíclica”, isto é, a repetir-se!
Mas afinal, quem eram estes homens de envergadura João Huss e Martinho Lutero? Analisemos um pouco da história de ambos para recordarmos estes homens simples mas, grandes e inabaláveis, nas suas convicções.

a) João Huss
O seu nome vem-lhe de Husinec, na Boémia, onde nasceu em 1369 no seio de uma família de aldeões eslavos, católicos fervorosos, que se honravam destes filho sacerdote. A Boémia , nesta época, estava a braços com uma aristocracia abastada e um clero corrompido, muito rico, detentor de um terço da fortuna pública.
Huss tinha-se tornado reitor da Universidade de Praga. Este era émulo de Wyclif, cujas obras penetraram na Boémia por volta de 1402. O zelo de João Huss, visava a reforma do clero. O Arcebispo de Praga excomunga-o!
Não se tendo verificado qualquer arrependimento, o Concílio irá proferir, a seu respeito, uma última decisão: “ tendo-se verificado que João Huss é obstinado e incorrigível e se recusa a entrar no seio da Igreja e a abjurar dos seus erros, decreta que o culpado seja deposto e degredado (…) e como a Igreja não pode fazer mais nada com Huss, entrega-o ao braço secular”. O que fez perder João Huss não foi, de modo algum, o seu orgulho, mas sim a sua fidelidade à Bíblia!
O processo continuou sob uma série de acontecimentos grotescos. Realçaremos um ou outro mais significativo: os bispos tiraram-lhe o cálice das mãos dizendo: “Judas, que abandonaste o conselho da paz para tomares o conselho dos judeus, nós te retiramos o cálice da Salvação”. De seguida colocaram-lhe uma mitra de papel, dizendo: “Abandona a tua alma a Satanás (…)”. A coroa era redonda e de quase dois pés de altura; tinha desenhadas “as figuras de três demónios horrorosos, apoderando-se de uma alma com as garras e levava esta inscrição: Hic est haeresiarcha (Este é um fundador de uma seita herética)”. E “quando saiu da Igreja estavam a queimar os seus livros na praça pública. (…) Todo o cortejo que o acompanhava era composto por uma inumerável multidão”.
Foi-lhe solicitado que abjurasse e confessasse os seus crimes e erros. De seguida foi amarrado a um poste vertical com uma cadeia ao pescoço; foi envolvido com madeira e palha até ao queixo. Uma vez mais foi convidado, pela última vez, a abjurar, mas sempre com resultado negativo! A ordem foi dada para se acender a fogueira; Huss, no meio das chamas cantava: Christe, Fili Dei vivi, misere nobis (Cristo, Filho do Deus vivo, tem misericórdia de nós); no momento em que ele ia repeti-lo, pela terceira vez, a asfixia o impediu”.
João Huss deu-se para que os ventos da Reforma pudessem continuar a soprar, contrariando assim a vontade desta confissão religiosa autoritária e opressora! João Huss morre “mártir a 6 de Julho de 1415”.
Como justificar tamanha crueldade e desrespeito pelo ser humano? Será através dos evangelhos? Neles somente encontramos outro tipo de violência expressa na inequívoca ordem: Ama o teu próximo (seja ele quem for, tenha ele a confissão religiosa que tiver) como a ti mesmo. Estas foram as palavras de Jesus, as quais orientaram, orientam e orientarão a vida de todos aqueles que se diziam, dizem e dirão ser Seus seguidores! Assim como também se aplicaram, aplicam e aplicarão a toda e qualquer confissão religiosa que diz ser e constituir a Sua continuidade nesta terra! Não poderá ser de outra maneira! E sabe porque o afirmamos? Por causa das palavras do Senhor Jesus!
Para o efeito, Ele mesmo anunciou um método infalível: “«Pelos frutos, pois, os conhecereis. Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de Meu Pai que está nos Céus»” – S: Mateus 7:20,21. (sublinhado nosso). Que abismo separa o dizer do fazer! É aqui, prezado leitor, que reside toda a diferença! Só por aqui é que poderemos saber se um dito “crente” ou “confissão religiosa”, são verdadeiros e se militam na VERDADE!
No evangelho não encontramos palavras que incitem à violência para impor uma vontade e, ainda por cima, espúria. Então, onde esta confissão religiosa as foi buscar, para justificar o seu pretenso zelo religioso?

b) Lutero
Nasceu, provavelmente, em 1483, em Eisleben (Turíngia).; filho segundo de um mineiro de origem campesina.
Mais tarde, apesar do desgosto paterno, entrou para os eremitas de S. Agostinho de Erfurt. Em 1507 é ordenado padre. Em 1509 é nomeado bacharel bíblico. Em 1510 interrompe a docência para fazer uma viagem a Roma. Ferido, mas não abalado na sua fé pelo espectáculo que lhe oferece a Cidade Eterna, regressa a Erfurt. Em 1511 é transferido para Vitemberg. Em 1512 é nomeado doutor em teologia.
Apesar da sua fidelidade à regra, Lutero não encontrava a paz que tanto aspirava. Quanto mais se submetia aos exercícios ascéticos, tanto mais considerava os seus méritos imperfeitos. A contrição e o arrependimento completo, que na falta de méritos suficientes lhe poderiam valer o perdão dos seus pecados, não lhe proporcionavam nenhum auxílio. A resposta que tanto esperava, irá encontrá-la, finalmente, em 1518, na epístola aos Romanos. Aqui descobre o texto que diz: “(…) o Justo viverá da fé” – Romanos 1:17.
Da vida de Lutero mencionaremos, para sermos breves, alguns episódios mais relevantes:
O Papa Leão X (1513-1521) renovara em 1515 a indulgência que o seu antecessor, Júlio II (1503-1513), promulgara tendo em vista a construção da Basílica de S. Pedro em Roma. Para a divulgação da mesma, confiara a sua pregação, para o norte da Alemanha, ao Arcebispo de Mogúncia, Alberto de Hohenzollern.
O Jubileu de 1516, o qual estava directamente associado à construção da Basílica de S. Pedro, propunha, nem mais nem menos, quatro tipos de negociações com Deus, a saber:
1- Um perdão total para quem se tiver confessado arrependido e tenha pago um óbolo tarifado segundo o seu rendimento e o seu estatuto.
2- A escolha do confessor e a suspensão de todos os casos reservados.
3- A participação nos bens espirituais da Igreja.
4- A troco do óbolo, a saída das almas do purgatório.
A consentir tal propósito era abrir a porta a dois tipos de males, a saber: 1- Favorecer uma devoção superficial; 2- Afastar os crentes da verdadeira fonte da salvação.
Além do mais, tal atitude, era um contra-senso de todo o tamanho, tendo em conta onde se encontravam Lutero e os seus paroquianos! E sabe porquê? Porque “a própria Igreja do Castelo de Vitemberg continha, graças à devoção e ao dinheiro de Frederico, o Sábio, relíquias capazes de assegurar aos devotos cerca de cento e trinta mil anos de indulgência!”
Lutero sentiu a necessidade de alertar os teólogos e de os convidar a reflectir acerca do problema; o reformador o fará nas famosas 95 teses sobre a virtude das ditas indulgências, assim como do seu verdadeiro significado! Com estas teses, ele não pretendia, diga-se com firmeza, instaurar uma nova doutrina ou criar uma nova confissão religiosa! O que ele desejava era “a reforma da Igreja Universal”. Ele propunha-se, simplesmente, recordar o que a Igreja ensinara outrora, ou seja, que as indulgências não conferiam às almas nada que contribuísse para a sua respectiva salvação e santificação. Só Deus podia perdoar os pecados daqueles que se arrependessem sinceramente.
Perante a situação que fomentou, Lutero foi admoestado a que se retractasse das suas posições anteriores tomadas contra Roma! O reformador irá comparecer na Dieta de Worms, em 1521, porque tinha atacado, entre outras coisas, a pretensão do clero e, em especial, do papa, de ser o único habilitado a interpretar as Escrituras! Pois “enquanto a discussão é teológica, não traz consequências, mas assim que o magistério da Igreja (entenda-se, a estrutura visível da Igreja-instituição) entra em jogo, o choque produz-se inevitavelmente e o conflito estala. (…). Nesta Dieta (tribunal) foi interrogado pelo Vigário-Geral; Lutero declarou-se incapaz de renegar os seus escritos, excepto se o conseguissem convencer de ter incorrido em erro à luz do testemunho da Sagrada Escritura.
Em síntese, poderemos dizer que a Reforma estava lançada! Devido ao seu grande entusiasmo começa a escrever o que seriam as bases deste grande movimento que ultrapassará as fronteiras alemãs, “e um oceano de papel impresso parte à conquista da Alemanha e da Europa”
Uma vez mais, sempre o mesmo dilema, sempre a mesma raiz de todos os problemas – as Escrituras! Como é que se pode ser cristão fazendo tábua rasa da Palavra de Deus? Será lógico ser-se julgado, por todos os meios, sem que nestes se integrem as Sagradas Escrituras? Se assim é, como se poderá dizer que esta ou aquela doutrina ou confissão religiosa está errada?
Quais os critérios de VERDADE, pelos quais julgar e catalogar um terceiro movimento ou terceiras pessoas? Se estes critérios de Verdade não existem, será que se poderá constituir uma acusação válida? Como seres pensantes e lógicos que somos, cremos que não!

c) A Inquisição
A Reforma estava implantada e era necessário engendrar os meios para a combater energicamente. Convoca-se o Concílio de Trento! Este prolongar-se-á por 25 sessões desde 1545 até 1563. Neste Concílio trataram-se, entre outros assuntos, de: a Tradição, as Escrituras e a Reforma. Não admira que se dissesse que “a Igreja com a nova fisionomia é uma Igreja de combate. O Concílio de Trento pronunciou, só ele, mais condenações, lançou mais anátemas que todos os concílios juntos!”
A Europa, devido às ideias propagadas pela Reforma, encontrava-se dividida e isto Roma não podia admitir! A resposta à Reforma Luterana será a Inquisição sob a liderança dos Jesuítas; esta ordem foi fundada por Inácio de Loiola (1491-1556). Este último regia-se por uma absoluta e incondicional obediência ao papa; o seu objectivo era a recuperação dos territórios perdidos em favor dos protestantes, assim como a conquista de todo o mundo pagão para a Igreja Católica Romana. Assim, a 15 de Agosto de 1534, Loiola e outros companheiros juraram consagrar todas as suas forças à Igreja. Esta Igreja “tinha chegado ao fundo do abismo, mas a subida estava próxima. O cadáver em pedaços ia reviver dentro em breve”.
Para que a depuração da Igreja tivesse lugar, foram escolhidos nove cardeais. Com um grande inquisidor como o Cardeal Caraffa era de esperar uma solução violenta. Neste clima de terror, diz-se que o Papa Pio IV (1556-1565) teria proferido uma frase, a saber: “tenho quatro C (Cês) grandes que me preocupam o espírito, isto é, Cardeais, Carafas, Concílio e Colonas”. Para que o prezado leitor tenha uma mínima ideia deste último, dele se diz: “o Cardeal Colona limpou a campina romana com tanta energia que se viram expostas na ponte de Santo Ângelo, disse o povo, mais cabeças cortadas do que melões no mercado!” Como reflexo deste dito que circulava, não é de admirar, a apreensão do Papa Pio IV!
Portugal, como é sabido, também foi contemplado com o estabelecimento da Inquisição no reinado de D. João III “pela bula de 23 de Maio de 1536”. A partir desta data, um terror generalizado se irá instalar; todos têm medo de todos por causa “das denúncias aleivosas, por meio das quais, à sombra do sacrossanto nome de Jesus Cristo e debaixo do véu da defesa do Cristianismo, se cometiam as mais atrozes vilezas, os mais espantosos perjúrios e as mais bárbaras traições”.
Neste tribunal eram julgados e condenados todos os que eram tidos por hereges; todos aqueles que tinham cometido o grande crime de estudar as Sagradas Escrituras! Denunciados e condenados eram conduzidos em suplício, em procissão dos Autos-de-fé. Para que o leitor possa ter uma mínima ideia do que este era, até ao suplício final, iremos descrever uma procissão deste tipo, feita em Lisboa:
“Iam diante os dois familiares, que tinham servido de procuradores naquele ano. Seguia-se a comunidade dos frades de S. Domingos e depois a cruz da Irmandade de S. Jorge. Acabada a irmandade ia o alcaide dos cárceres secretos, com a sua vara de meirinho. Seguiam-se imediatamente os réus, todos descalços e cada um entre dois familiares.
Iam primeiro os homens, por esta ordem: em primeiro lugar, os que não abjuravam, nem levavam hábito. Depois, os que abjuravam de leve suspeita na fé, como por casar duas ou mais vezes, sendo viva a primeira mulher. A seguir os que abjuravam de veemente suspeita de fé, que eram os que negavam haver cometido a culpa porque tinham sido presos, e a prova que resultou contra eles não foi bastante para se lhes impor a pena ordinária (queimá-los), que se dava aos hereges negativos. A estes não se confiscavam os bens, só pagavam os gastos da comida, roupa e processo, e dava-se-lhes o castigo que os inquisidores arbitrariamente julgavam proporcionado à culpa e à prova dela.
Seguiam-se imediatamente os que abjuravam em forma por judaísmo, os quais já iam decorados com uma veste adequada pelos inquisidores para este acto, a que dão o nome de Sambenito. Estas vestes colocavam-se, no penitente, sobre o seu traje ordinário, havendo até alguns que eram obrigados a trazê-las por longo espaço de tempo em sinal de penitência e em cumprimento da qual deviam, em certos dias festivos, permanecer nesta forma à porta dos templos principais ou de maior concorrência.
Logo a seguir seguiam-se outros mais graduados em criminalidade ou que, sendo réus do mesmo crime dos precedentes, reuniam outras circunstâncias que lhos tornavam mais agravantes; a estes confiscavam-se os bens e davam-se penas muito maiores do que aos outros. Acabados os homens, seguiam-se as mulheres, pela mesma ordem. Levavam também sambenito as que abjuravam por judaísmo. Era o sambenito uma veste em pano de lã amarela, que lançada pela cabeça descia do pescoço até abaixo da cintura, duma e doutra parte, e de ambas assentava sobre este pano uma cruz em forma de aspa, a qual era de cor vermelha.

09/09/2010

A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL: O SUPLÍCIO!

D. João III
EM esplendor – morto D. João III, continuou o tribunal-flagelo num perfeito à vontade, visto que os seus sucessores não se preocupavam com opor-lhe embaraços. D. Sebastião enterrou a monarquia nos areais de Alcácer; o cardeal D. Henrique, que tanto tempo foi inquisidor-geral, pouco reinou e tinha o Santo Ofício no coração… Excluído o duque de Beja e seu filho D. António, os fidalgos e o clero entregaram o trono a Filipe II de Espanha.
Por conseguinte, em 1580, entra em verdadeira explosão a Inquisição. O rei, que tanto a protegia em Madrid, com certeza não se iria opor ao seu mais vasto desenvolvimento em Portugal, tanto mais que lhe servia de instrumento para o primeiro país conquistado. E assim enquanto os Portugueses eram queimados pela Igreja, em nome de Deus, eram também despojados, em nome do trono, pelo rei. De sorte que os nobres, que, por seus bens, eram suspeitos de ter crédito na nação, logo eram declarados hereges e traidores. E, se fugiam, para salvar a vida, sofriam imediatamente o confisco dos bens.
Filipe nomeou o arquiduque de Áustria, cardal Alberto, governador ou vice-rei de Portugal e o papa nomeou-o núncio e inquisidor-geral.
As únicas funções que os Portugueses exerceram durante o domínio espanhol foram as de pagar impostos.
O povo de “varões assinalados”, “que por mares nunca dantes navegados”, tinha aberto à Europa o caminho da Ásia e cobrado tributo do Ganges e da China, caminhava agora como um rebanho de ovelhas para as torturas e para as fogueiras da Inquisição, ou morria de miséria sobre o próprio território para onde carreara os tesouros da Índia.
O tormento de fogo
D. João IV – Mas um belo dia, um punhado de patriotas, secundados pelo povo, sacode o jugo de Castela. Oferece o trono de Portugal ao duque de Bragança, que fica perplexo… Mas a mulher, D. Luísa de Gusmão, ter-lhe-ia dito: “Aceitai, D. João: excelente coisa é morrer como rei, ainda que não seja senão por um quarto de hora.” Fosse como fosse, D. João foi rei.
E uma vez que o reino lhe foi entregue por quem pôs em risco a vida para o reaver dos estrangeiros, tinha por obrigação ser rei…de Portugal. Era detentor de uma autoridade que lhe foi conferida pela Nação, representada pelos conspirador s de 1640…Atrás dos Filipes parece que devia ter ido a Inquisição. A Inquisição e o papa. A obra enorme a fazer, depois de resfriado o rescaldo do incêndio, foi confiada a um fraco rei, gerador de fraca dinastia. Começa, por consequência, a era nova com a cumplicidade do rei nas infâmias do Santo Ofício. Apenas teve coragem para proibir o confisco dos bens aos acusados. Claro que os inquisidores, prejudicados nas suas rendas, queixaram-se ao papa. Este mandou um breve mantendo o confisco e excomungando quem se opusesse à execução do diploma pontifício.
Tormento do Potro
O rei neste caso não se desconcertou: - Perguntou para quem reverteriam as confiscações. Responderam-lhe que eram a favor do rei. Então D. João IV replicou: - Consinto em que confisqueis – para mostrar o profundo respeito que consagro ao papa – e mediante inventário exacto dos bens. Mas como posso dispor do que é meu, declaro que faço desde já doação dos bens aos acusados e suas famílias, devendo ser-lhes restituídos, qualquer que seja a pena…
E durante este reinado salvaram-se os bens dos desgraçados, porque os inquisidores, receosos de se atraiçoarem, não insistiram… Mas guardaram-na… Mal o rei morreu, declararam que ele “tinha iludido por um subterfúgio as vontades de Sua Santidade e contrariado as suas ordens”. Estava pois incurso – segundo eles – na excomunhão imposta no breve do papa contra os que obstassem à sua execução. D. João IV morrera, portanto, sob o estigma da condenação eterna; e só depois de absolvido pela Inquisição podia continuar na sepultura. No dia das exéquias solenes, os inquisidores partiram desde o palácio do inquisidor-geral, em procissão, e revestidos. Acompanhava-os uma multidão imensa. Dentro da igreja, na presença da rainha viúva e de seus dois filhos D. Afonso e D. Pedro, mandam os esbirros apear da Eça o caixão, abrem-no, tiram o cadáver, despojam-no das mortalhas e estendem-no no chão. Lêem a sentença que o declara excomungado, proclamam-no inimigo da Igreja e depois… pronunciam a absolvição!
Só depois de terem assim concedido à alma do rei licença para se apresentar diante de Deus, mandaram seguir o cadáver no caixão e continuarem os funerais.

03/09/2010

A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL: A HIPOCRISIA!

D. Pedro II
Tendo o Santo Ofício ficado impune, depois de tamanha audácia, redobrou de zelo para Céus, amiudando-se as cenas de sangue e as fogueiras. E o que é certo é que o terror inspirado pelo terrível tribunal foi até embrutecer o povo e lhe anestesiar a sensibilidade moral, o sentimento de ingénita bondade e até de misericórdia! Foram tão perseguidos com torturas e suplícios os cristãos-novos e habituou-se tanto o povo ao espectáculo do tormento, que nem já parecia que tinha coração; pois nenhuma piedade se revelava nele por esses desgraçados. Fosse qual fosse o crime cometido em Portugal, era invariavelmente, e sem discussão, atribuído aos cristãos-novos. Os próprios magistrados, já por hábito se mantinham no mesmo juízo fácil; e já nem as leis valiam perante a vontade dos inquisidores dominando no íntimo da multidão na consciência dos juízes.
Em 1672, os ladrões assaltaram uma igreja de Lisboa, arrombaram o sacrário, levaram os vasos sagrados e deixaram as hóstias espalhadas pelo chão da igreja. Foram logo acusados os cristãos-novos; e ninguém duvidou. Os juízes da Relação de Lisboa fizeram-se reflexo da voz do povo e confirmaram. Fazem-se buscas domiciliárias, inquéritos, interrogatórios, e todas as prisões são poucas para conter a multidão de indivíduos presos. Contudo, nada se esclarece, a verdade não brilha, não se determinam os culpados. Mas não se procura outra pista. Os juízes, pervertidos na sanha da perseguição dos cristãos-novos, nem de longe supõem que possam ser outros os autores. O povo, enfurecido, por não se encontrarem os culpados, punha em risco a vida dos que ainda só tinham sido presos e ameaçava arrombar as prisões para exercer violências sobre os presos que ele supunha protegidos pelos juízes!...
AUTO-DE-FÉ EM GOA
O governo assustou-se e lançou logo a ideia da expulsão de todos os cristãos-novos, para acalmar as iras populares.
De súbito, fazendo também sobre toda a gente a maior das surpresas, um verdadeiro espanto, a Inquisição que, durante mais de um século, friamente, com pautada perversidade imolava cristãos-novos a Deus Nosso Senhor, surgiu, compadecida! A fazer oposição ao extermínio anunciado! Ela, que tomara lançá-los todos no mesmo dia à fogueira, vinha, solicitamente, ter mão no golpe que outros se aprestavam para lhes verberar. E lá pôs diante da turba ignorante e desmoralizada, e das autoridades pervertidas, o interesse de Deus! Hipócritas!...
“Mandar para longes terras estranhas aquela pobre gente, ainda tão fraca na sua fé… Assim longe dos ministros do Senhor, que a sabem dirigir pelo caminho da salvação abandonariam logo a religião! – A sua expulsão nesta hora seria um desastre perigoso…um sacrilégio!” – gemiam eles.
Suprema hipocrisia!
O que os inquisidores não queriam era que a sua autoridade ficasse diminuída com a violenta providência anunciada pelo governo! O que eles não queriam era que lhes fugissem das mãos esses desgraçados, porque perdiam com eles a carne para queimar e um poderoso meio de satisfazerem a sua insaciável cobiça!
Vestígios das escolas gerais, em Lisboa, que serviram de
recolhimento para penitenciária dos condenados pela
Inquisição
Entretanto, é preso um salteador quando assaltava uma casa de campo para a roubar. Encontrava-se-lhe ao peito uma cruz de um dos vasos sagrados, roubados em Lisboa meses antes. Verifica-se ter sido ele o único autor do roubo. É um cristão-velho… São postos imediatamente em liberdade todos os cristãos-novos (judeus supostamente convertidos ao cristianismo) presos inocentes… O povo, que tanto se tinha enfurecido antes, até os olhou com benevolência, e arrependimento de ter tido juízo tão grave e tão fácil.
Pois os inquisidores, que tanta piedade aparentaram quando o povo os perseguia, quando os magistrados os prendiam e o governo pensou em expulsá-los, mal a opinião reconsiderou, em face da descoberta do criminoso, e se declarou favorável aos infelizes injustamente tão maltratados, erguem-se agora como víboras, da toca de onde tinham babujado a sua falsa piedade, fazem prender de novo os que a justiça reconhecera inocentes, afirma e espalham que só eles eram juízes competentes em semelhante matéria e fazem público que a descoberta do criminoso tinha sido uma invenção, um subterfúgio, para encobrirem e salvarem os verdadeiros criminosos.
Ninguém se opôs! D. Pedro II – rei da época, tinha tido coragem para roubar o reino e a mulher ao irmão!... Neste caso…quebraram-se-lhe os ânimos!... Redobraram as torturas e acenderam-se as fogueiras.
Triunfo absoluto!